Número 34

28 de Outubro de 2023

OBRIGAÇÕES DO TESOURO

O diagnóstico

HÉLIO BARATA

Onésimo não tinha amigos porque nunca se calava. As pessoas, em teoria, até gostavam dele, mas a torrente de verbosidade que dele brotava a toda a hora afastava-as. Evitavam-no na rua, estavam sempre ocupadas, bloqueavam -lhe o número de telefone. A vida sentimental ia pelo mesmo caminho. Dos homens, já tinha desistido há muito, não havia um que o aturasse meia hora sequer. Entre as mulheres, sempre ia encontrando umas mais pacientes e salvadoras que o suportavam por um par de dias, mas não mais. A sua única saída eram os serviços de atendimento telefónicos, a que ligava por razões fúteis para passar horas a falar, destruindo as médias de produtividade dos operadores que tinham o azar de o atender. Mas mesmo essa possibilidade foi desaparecendo à medida que esses serviços começaram a ser substituídos por atendimentos automáticos sem grande margem para as elaboradas exposições que ele precisava de fazer sair para evitar a sensação de que ia explodir.

Apesar de atribuir o problema à incompreensão alheia, decidiu seguir o conselho de um chatbot de inteligência artificial a quem confessava o seu íntimo e foi a um médico especialista em verborragia. O processo de avaliação, disse-lhe o médico na primeira consulta, era complexo, envolveria baterias de testes e exames. A verborragia constituía todo um mundo pleno de matizes, diagnósticos diferenciais e rios de dinheiro, um pouco menos se não quisesse recibo. Por exemplo, prosseguiu, não é a mesma coisa não conseguir fechar o bico apenas na sua língua nativa ou não calar a matraca em línguas estrangeiras; debitar sem parança durante o sono ou ser a logorreia um fenómeno exclusivamente diurno, como no caso das galinhas; se as suas falas eram principalmente perguntas ou se palrava de uma forma essencialmente exclamativa. Um problema que exigia uma entrega não disponível a qualquer um, em suma. Dependendo de um rol de fatores, o diagnóstico poderia ir de algo pouco específico, como estar simplesmente trolaró, a patologias redutíveis a siglas e a síndromes com nomes de cientistas alemães já falecidos.

Onésimo estava nessa, não por convicção, mas porque não lhe ocorria mais nada que pudesse fazer. E o programa de consultas e testes dava-lhe a oportunidade de falar e falar durante várias horas sem julgamentos e com um propósito clinicamente reconhecido. Com efeito, em vez de cansativo, o processo foi revigorante. As consultas, os elétrodos, os questionários, tudo aquilo lhe dava a sensação de ter um propósito na vida, de finalmente ser um cidadão de pleno direito a quem não mandavam calar pelo simples facto de estar doze ou treze horas seguidas a tagarelar.

Na consulta final, mal conseguia conter a expectativa. Iria, finalmente, ter um nome para se dar. O médico disparou antes que Onésimo tivesse oportunidade para começar a falar: tinha duas notícias: uma boa e uma ótima. Onésimo estacou, o coração quase parado como o de um crocodilo à espreita. A notícia boa era que o caso dele, disse o esculápio, era, afinal, bastante simples. Tratava-se de uma síndrome pouco comum cujo nome, extensíssimo, costumava ser reduzido a uma sigla. Uma designação com impacto, socialmente valorizada e com um potencial de exploração política ainda por aproveitar. Aliás, segundo um recente estudo de uma universidade dinamarquesa, as pessoas, se informadas da sua condição, estariam disponíveis para o aturar mais sessenta por cento do tempo. Ou seja, acrescentou a título de exemplo, alguém que já não o conseguisse ouvir ao fim de duas horas, só iria fugir com a cabeça feita em água passadas três horas e doze minutos. Em média. Os olhos de Onésimo brilhavam de surpresa e alegria. Nunca lhe tinha ocorrido que um simples diagnóstico pudesse ter um impacto tão grande na mudança de atitudes.

A notícia ótima, continuou o médico, era que a síndrome que lhe havia sido diagnosticada, embora não tendo cura, era controlável com a toma diária de um cocktail de fármacos psicoativos cuja eficácia tinha sido descoberta recentemente por uma universidade irlandesa. Ou seja, juntando a tolerância que o simples diagnóstico acrescentava à redução da necessidade de matraquear a que a medicação conduziria, seria possível a Onésimo levar uma vida praticamente normal, realizada e, acima de tudo, feliz. Ao ouvir esta notícia, o sorriso beatífico de Onésimo transformou-se num esgar de cólera. Como poderia aquela ser uma “ótima notícia”? Dava-lhe com uma mão a possibilidade de afirmação do seu eu e, com a outra, oferecia-lhe a conformação da sua pessoa a um ideal de comportamento criado por uma sociedade materialista e sem alma? Quis vociferar a sua indignação, mas o estado de nervos em que aquela última notícia o pusera deixou-o sem voz. Da sua boca aberta saía apenas um som cavo, um vento rouco desprovido de logos. Desesperado, levantou-se, bateu várias vezes com o calcanhar direito no chão enquanto esbracejava e saiu, batendo a porta do consultório com toda a força que tinha.