Número 31

29 de Abril de 2023

ENSAIOS SOBRE A VIDA

O dilema de Eduarda das Dores

MARIA DE ASSUNÇÃO

Dona Eduarda desligou a televisão mesmo antes de fazer um ovo estrelado. A última imagem que reteve foi a de um Tesla despistado. O assunto até lhe despertava interesse, mas sentiu uma urgência, um desejo, de ovos fritos em azeite a que não conseguiu resistir.

Porque fui com a Maria àquele Gin Tasting no Pestana Palace, pensou. Ela, uma pessoa regra geral tão tranquila, que não aprecia confusões. O que lhe havia de acontecer aos 50 anos. Repetiu o teste três vezes. Não havia dúvidas, disso tinha a certeza. Só lhe faltava ligar outra vez para a Clínica dos Arcos.

A Maria deixou-lhe um exemplar da nova revista que anda a fazer. Víbora – para as mulheres que escolhem o seu veneno. Título promissor para a magazine feminista do século XXI.

Como sempre, Maria escreve sobre a víbora mesmo. Eduarda, mais ou menos saciada com duas gemas (nunca come a albumina), sentou-se no sofá, a apreciar o design minimalista da revista e as ilustrações, antes de começar a leitura. Respirou fundo. Tinha-lhe prometido retorno. Vamos a isto, disse para si mesma.

Apesar da víbora ser o símbolo da maldade e do veneno, poucos sabem que este animal é ovovivíparo, e que por vezes não sobrevive ao parto.

Que imagem animadora, suspirou.

A possível etimologia de vipera significa “aquela que pare filhos vivos”. Os animais ovovivíparos são considerados por alguns investigadores como um estado intermédio evolutivo entre os seres ovíparos, que põem ovos, e os seres vivíparos, que dão à luz crias vivas.

Bem, podia ser pior, pensou. Pelo menos, não são nados-mortos.

A viviparidade evoluiu diversas vezes de forma paralela na evolução. Entre os seres vivíparos, contam-se os escorpiões e os mamíferos da classe Theria, que exclui os monotremados.

Theria. Gostava daquela palavra. Uma amiga uma vez disse-lhe que queria dizer besta selvagem. Quem foi selvagem foi ela, com aquele dândi idiota no quarto de hotel.

Pensa-se que a evolução dos seres ovíparos para seres vivíparos se deve a transposons, também conhecidos por genes saltadores ou genes parasitas, que podem ser transferidos horizontalmente por vírus.

Isso é que era, pôr a culpa da gravidez nos vírus. Nem a igreja se lembrou disso.

Esses genes móveis conseguem silenciar ou ativar conjuntos de genes, e pensa-se que foram cruciais para recrutar os genes envolvidos na produção de ovos para suportar o desenvolvimento intrauterino do feto.

Ora aí está coisa que nunca tinha pensado. Se uma antepassada não se tivesse constipado, ela punha ovos como as galinhas. O pensamento divertiu-a.

Há quem equipare a gravidez ao parasitismo – uma anomalia, um ovo chocado no espaço interno, que vive à custa da mãe, em conflito com ela. O feto desliga o sistema imunitário da hospedeira para não ser expulso. Os seus genomas não são iguais, e o feto pode estabelecer uma aliança paterna, passando para a geração futura genes que nada têm a ver com ela.

Isso é que era bom, pensou. Aliança, uma ova. Se dependesse dela, ele nunca saberia que havia genes na barriga dela, que não foram lá parar por ingestão.

Por outro lado, há novas perspetivas que entendem a gravidez como um indivíduo histórico. A mulher não é um aquário, um contentor para o feto, defendem alguns. A mulher grávida é uma simbiose, mesmo que transiente, onde o feto passa a fazer parte do seu plano corporal.

Bem, certamente que este feto não estava englobado nos seus planos. Toda a história não foi mais do que uma grande chatice.

O conceito de indivíduo histórico, em evo-devo, tem sido aplicado a membros de vertebrados, tipos de células, e foi estendido a estados de desenvolvimento, como as larvas de borboletas.

Eduarda sorriu. Gostava de borboletas. Não tanto de larvas.

Sob este ponto de vista, o feto e a mãe colaboram na construção do novo espaço e constituem uma unidade, um só ser.

Eduarda não estava convencida. Lembrou-se do livro de Kathleen Mcauliffe, This is your brain on parasites, e recordava-se perfeitamente que os parasitas são manipuladores e colocam no nosso cérebro ideias para fazermos o que eles querem, via hormonas, substâncias psicoativas e sei lá que mais. De certeza que foi o feto que pediu os ovos estrelados. Já estava a ser manipulada e não sabia.

O contexto do indivíduo histórico, que permite a sua realização e florescimento, é o scaffolding – recursos orgânicos não incorporados no sistema, composto pelo pai, pelos elementos do ambiente de suporte, como o ninho.

Eduarda suspendeu a leitura. Scaffolding. Estruturas de suporte. Certamente que tinha estrutura para suportar um feto. À custa de mudar radicalmente a sua vida que tanto lhe custou a construir. E certamente não queria o pai lá em casa, a mudar-lhe a ordem dos talheres, a pôr os pés em cima do sofá. Gostava mais da ideia do parasita intrauterino. Tinha de dizer isto à Maria.

O aparecimento da gravidez e o seu entendimento como indivíduo histórico é uma novidade evolutiva, que se baseia na persistência e não substituibilidade. Apesar deste conceito ser originalmente usado para partes do corpo, pode ser igualmente aplicado a esta nova entidade.

Hum, o feto como uma parte de si autonomizada, que metonímia metafórica. Agora não conseguia lidar com isto. Levantou-se para pegar no telefone. Ia tatuar uma borboleta.


Ilustração de Mari Momo