É comum chamarmos de erro ao desconhecido, de deserto a uma invisibilidade, de silêncio a uma hipersonoridade. Tão comum, essa prática livre de insónia, que não se inibe de condenar cidades inteiras ao castigo moral de se dizer, assim tão descaradamente, vazia.
Perguntem à Maria pela fila que se acumula na porta entreaberta. Lá dentro há o grão: a luz obriga o esforço dos olhos; e há o estalido: a secura do batimento das peças umas nas outras, pontuando a atenção nas conversas. Ao contrário da morosidade que carrega o termo tradição, a comida não tarda a chegar à mesa. O que demora — o que se demora — são as palavras a desenrolarem-se na mesa, sem a vigilância do relógio. Há a lentidão causada pelo álcool, que não facilita a língua, mas também o vagar nos corpos cuja pressa não conseguiu romper nas ruas. Há a pobreza que se firma nos dentes, mas também aquela que é cravejada de marfim.
Perguntem ao casal Cunha que quarto vos destinaria o destino, quando dele desconfiamos, escondido nas pregas das cortinas. Eles, que são duas humanidades inteiras a viverem juntos há mais de trinta anos, eles, que ponderaram o divórcio para prosperarem juntos, eles, que se encontram à mesma hora viajando a velocidades diferentes, eles, que arranjaram maneira de prolongar a rua até ao último piso do prédio que partilham com os que precisam de uma cama para passar a noite. Eles, que são o prolongamento da rua.
A cidade não está vazia, nem de fantasmas se tratam os vultos maciços que se esbarram nas esquinas. Somos todos contemporâneos destes calcários verdes, imundos, pestilentos, e todos culpados e cúmplices, fazedores de cidades. O que acontece, meus irmãos de artérias largas e ávidas de fluxos, filhos da inversão dos cheios e dos vazios, é que nos desabituámos aos becos, às vielas e ao chanfro dos cunhais. Crescemos nos corredores largos, acumulados de privilégios, prosseguindo as tabuletas, os rácios, as rações, as orações, os desenhos e as máximas de Jeanneret.
Claro que foi tudo uma questão de progresso, esta coisa de afastarmos as fachadas: a salubridade, a segurança, a mobilidade. Mas se é verdade que as cidades deixaram que o Sol estourasse no chão, também é verdade que reservámos esse horário para estarmos imersos na esquivança do trabalho; se passámos a conseguir patrulhar as ruas com as novas tecnologias da visão, também é verdade que um novo espelho vigilante nos persegue até nos sonhos; se é verdade que aproximámos as distâncias entre as escolas, os cafés e as nossas casas, não é mentira que por levarmos o carro de garagem em garagem, deixámos de saudar o vizinho na porta destinada aos andantes.
Lá em baixo, junto ao rio — essa larga correnteza — a cidade é um coração poderoso, perdido no seu próprio labirinto. Alheio ao Passado e alheio ao Futuro, distrito de tensões comprimidas, cuja energia acumulada ressoa a cada porta, ainda sobrevive, não só uma certa maneira de habitar, mas uma maneira certa de habitar. Apenas mais húmida, sombria e misteriosa, como todas as histórias que valem a pena serem lidas.
E se duvidarem que é tudo uma questão de enredo, que é tudo uma questão de voltarmos a pensar através de ligações contínuas, como as palavras que se trocam na fila daquela tasca; se duvidarem dos perigos de pensar o espaço somente como uma absoluta hiperligação, onde nunca nos perdemos na imediatez dos atalhos, perguntem ao Mário, o talhante sentado entre as carnes penduradas e as nervuras de um mármore sanguíneo e rutilante, tingido de todas as provas de um assassinato, que lâmina deverão escolher para separar melhor duas partes do mesmo corpo. E esqueçam o corte: aprendam, sim, a viver nesse gume.