Número 28

28 de Janeiro de 2023

MERCADO DE FUTUROS

O melhor cego

HÉLIO BARATA

Estou a contactá-lo por um motivo que lhe parecerá invulgar: um cego. Por certo saberá que se trata de uma pessoa que não vê, alguém desprovido do sentido da visão. Suponho que julgará, como julgava eu, que esse era um problema ultrapassado há muito pela biotecnologia. Mas, como poderá verificar por esta minha exposição, não é esse o caso. Começarei pelo princípio, relatando uma situação que eu próprio presenciei e que nos tem de coração nas mãos.

Como o senhor ministro sabe, quando, por imposição legal, a Nossa Região teve de se especializar, a escolha recaiu na gastronomia. À falta de outros atrativos que pudessem constituir argumentos exclusivos de venda do nosso território, virámo-nos para a comida. De uma forma de outra, é sempre uma saída, pois não há lugar que não tenha as suas tradições culinárias que podem ser enriquecidas, reformuladas, adaptadas e promovidas como tendo um caráter distinto e enraizado numa qualquer história única, numa identidade. E comer é daquelas coisas que motivam as pessoas a deslocar-se, especialmente quando a necessidade se alia à ostentação. No contexto em que vivíamos, parecia ser uma boa opção que o tempo confirmou através de casos como o do estabelecimento do setor da restauração de que sou coproprietário com a minha esposa, o Bate n’Avó, de que certamente já ouviu falar. Mais que qualquer outro estabelecimento da Nossa Região, o Bate n’Avó, apostou na decoração do espaço, na apresentação dos pratos, no desenvolvimento de materiais de promoção e divulgação, no apuramento das receitas para que estas, mesmo recorrendo a produtos inéditos e mais custo-eficientes, pudessem ser vendidas como algo saído da alma do Nosso Povo a preços exorbitantes. As longas listas de espera, maiores ainda que para cirurgias urgentes ao coração, e o número de visualizações nas redes sociais aí estão para comprovar o valor da nossa aposta.

Naturalmente, a chegada, há cerca de duas semanas, de um grupo de quatro que incluía um cego, de óculos escuros e bengala como nos filmes antigos, constituiu um duplo choque. Por um lado, pelo inusitado: a maior parte das pessoas presentes na sala nunca tinham visto um cego, o que naturalmente atraiu alguma curiosidade, para não dizer espanto. O que levaria alguém a não recorrer às soluções disponíveis para solucionar aquela incapacidade, hoje à distância de um seguro de saúde dos mais baratinhos? Por outro, a constatação, por parte dos responsáveis e colaboradores do estabelecimento, de que aquele indivíduo seria insensível a todo o investimento que ali tinha sido feito, muito do qual comparticipado com fundos nacionais e internacionais. Foi para nós evidente desde o primeiro momento que aquele indivíduo não só não seria arrebatado pelas referências culturais que estrategicamente pontuam a sala, como não iria contribuir para a divulgação do negócio através da publicação compulsiva de fotos dos pratos e das imitações de bens posicionais que são parte fundamental da decoração realizada pelo mais famoso designer de interiores da Região do Lado, que se especializou precisamente na visualidade ao abrigo dos programas de desenvolvimento vigentes.

O aspeto sumptuoso da Extravagância de Pato passou-lhe ao lado, como é óbvio, tendo preferido concentrar-se na sua textura e no sabor. Ainda aumentámos o volume da música ambiente, de forma a proporcionar um estímulo adicional, mas o indivíduo, quando instado por um dos nossos colaboradores humanos (que fazemos questão de manter por razões de imagem) a pronunciar-se sobre o seu grau de satisfação com a iguaria, não se coibiu de dizer que sabia à mesma coisa que os baldes de proteínas que o filho ingere para manter o corpo pretendido pelas agências publicitárias. Como lembrou a minha esposa, à boca pequena, bem dizia a bisavó que o melhor cego é o que se cala.

Soube que a sua estada no hotel também não correu bem. Pelo que me disseram, indiferente à impressionante sensação de espaço da receção e à cuidada escolha de cores (complementares) dos quartos, terá mesmo apresentado uma reclamação por o quarto ser frio, a cama desconfortável e se ouvir o barulho da canalização.

Como compreenderá, a nossa economia das aparências não está preparada para gente desta que, no limite, poderá levar a uma degradação irrecuperável da situação financeira dos agentes económicos e, consequentemente, ao colapso da economia nacional. Julgo que não será, portanto, inoportuno solicitar algum tipo de iniciativa por parte do governo. Em primeiro lugar, fazer um levantamento: haverá mais destes? E quantos? Onde vivem, como se deslocam, o que os motiva, porque se recusam a corrigir-se? Em segundo, caso as conclusões do levantamento o justifiquem, atrevo-me a sugerir a possibilidade de promover iniciativas mais duras, compulsórias, como a que há uns anos em boa hora culminou com a insuficientemente celebrada extinção dos canhotos, pelo perigo que representavam para a segurança coletiva.