Número 10

7 de Agosto de 2021

CORPO, BELEZA E SAÚDE

O meu amante

RITA SERRA

Eu entro nele e sinto o meu corpo primeiro a retrair-se e depois a estender-se, a fundir-se, sem se diluir. A água lava-me, independentemente de quantas pessoas já tenha lavado antes, porque é corrente. Tudo é gozo: os brilhos, o toque, as inúmeras surpresas, todos os cambiantes. O silêncio tremendamente relaxante que permite a todos os outros pequenos sons brilharem. Vejo, sinto e desloco-me em câmara lenta, como se fosse um tronco. Vêm os peixes e mordiscam-me se fico parada. Atrevo-me e afundo-me mais, mergulho nas águas, tolero o arrepio e abro os olhos para ver os raios de luz entre o verde escuro. Respiro. Passam por mim folhas, alfaiates, serras, árvores. O alívio de não ter pessoas. O meu amante não é só meu nem eu só dele. Temos assim um amor sem posse mas com uso. Exijo, no entanto, este momento de intimidade e de entrega não-recíproca. Tenho de estar só, ou quase. Surgem das margens os seres como eu, que também precisam deste silêncio húmido. Deste deleite sensorial que toca a pele toda. Que culpa tenho eu de ser tão hedonista?