Lembro-me vagamente duma anedota parva. Dum estudante de medicina que encontrou num cadáver um osso que não estava no livro de anatomia do professor. Claramente, estavam perante um caso atípico. Nunca se questiona o livro dum professor por um osso errado.
Esta anedota é o ponto de partida para uma investigação particular. Trata-se de redescobrir em que ponto deixei de ser cientista.
Comecei por procurar entender o que é a narrativa. Daqui cruzei-me rapidamente com uma ressalva: as narrativas, e as evidências de base narrativa, são anedotas, excertos de conhecimento baseados na experiência das pessoas. E a experiência das pessoas não é confiável.
A experiência das pessoas é narrativa. Pode passar a ser ciência se for descrita por um cientista — aí chama-se estudo de caso.
A narrativa parece estar ligada a dois atos problemáticos: o de aprender e o de comunicar. Pelo contrário, a ciência está ligada a coisas mais respeitáveis: ensinar e disseminar.
A ciência é um edifício construído ao longo de muito tempo que não vem abaixo por um osso errado. Coitado do Popper e do seu princípio de falsificabilidade. Um osso errado é, no melhor dos casos, um osso atípico, que não desafia a construção da ciência como uma coisa típica, normal, que define normas.
A ciência é um “ato irrestrito de pensamento indutivo” (William Kyle).1 Essa “irrestrição” consiste na generalização infinita — chama-se universalização.
A ciência, como narrativa, é uma psicose, diz-nos Sam Vaknin. Ah, mas é uma psicose particular, que agrega materiais, diz o pobre Bruno Latour. Mais do que pobre, Latour teve um otimismo patético. O otimismo de que os materiais são mais fortes do que a ficção psicótica.
Inevitavelmente penso como uma revolucionária. Inevitavelmente penso como o Thomas Kuhn. Penso que é preciso juntar muitos ossos para fazer uma revolução. Muitos ossos, muitas adagas, muitas foices, muitas agulhas, muitos tachos e panelas. Muitos objetos que caem fora da narrativa oficial. Penso que é preciso juntar todos os fantasmas, zombies, vampiros, para marchar contra este edifício e deitar-lhe fogo para iluminar o povo, como disse o Antero de Quental. Mas não é o meu estilo, a não ser que não tenha mais nenhuma opção que não seja deitar abaixo a parede.
Eu sou, ou quero ser, mais como a água.
Sou, ou quero ser, mais como o Guilherme de Baskerville. Mais como o Sherlock Holmes. Mais como a Donna Haraway. Seres que não põem a ciência em primeiro lugar, seres tratores de aprendizagem. Como auto-centrada que sou, só me interessa o pensamento crítico, não a teoria crítica; só me interessa aprender, não ensinar; só me interessa comungar, não comunicar. Só me interessam as coisas que têm como referência eu própria para entender e interagir com o mundo. O que me importa para habitar um mundo feito de gerais a partir de particulares. Um mundo de indivíduos sem pretensão de serem espécies. De caixas fechadas que se abrem para ver componentes. De livros que posso ler ou não. As coisas que apreendo pelo toque e indagação.
A indagação não é ciência. Diz-nos William Kyle em 1980, que só fundiram as coisas porque “by teaching science as inquiry, Americans’ attitudes toward science and scientists will improve immensely”.
Agora, o castelo da ciência está em ruínas e nem sequer temos onde depositar o ossário que recolhemos para lhe atirar. Talvez tenhamos de costurar cemitérios, ou fazer novas construções com os ossos. Quem sabe, no mínimo, um anexo.
1. Kyle Jr, W. C. (1980). “The distinction between inquiry and scientific inquiry and why high school students should be cognizant of the distinction”. Journal of Research in Science Teaching, 17(2), 123-30.