Levou o dia todo a preparar-se para o jantar. Uma corrida matinal de seis quilómetros pelo bosque periurbano seguido de meio litro de sumo de frutos vermelhos, exceto o mirtilo que é azul mas também tem propriedades antioxidantes. Um longo banho de imersão com sal de Epsom acompanhado de sons da natureza.
Os dentes de um leão a rasgar a coxa de uma gazela donzela aflita; a amplificação da onda P do sismo que viria a liquefazer o subsolo de Christchurch; uma superfície frontal a varrer a extensa pradaria do Dakota do Sul; a chuva da monção sobre as palmas dos coqueiros que a globalização pré-hegemónica manteve no Ceilão; a reconstituição do que se supõe ser o último bramido do último mamute lanudo enquanto era trespassado pelas lanças dos rupestres; tudo remisturado pelo DJ B3tinh0.
Um almoço inexistente para não ocupar espaço, o que tem preço fixo não é para desperdiçar e uma corridinha de transporte individual e remunerado de passageiros em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica até centro comercial periurbano para comprar a prenda para levar ao jantar de aniversário, já não sabe de quem. É esse o preço, esse e a presença no meio de toda aquela gente que se preferiria ignota.
Um candeeiro de lava sustentável, o candeeiro, não a lava; um candeeiro de díodos com controlo por wifi, ambos insustentáveis; um jogo de tabuleiro para um ou para vários, consoante as ocasiões e os estados de espírito; um aparador de pelos púbicos com as lâminas concebidas especificamente para não ferir (desnecessariamente) os genitais; ou então uma simples colcha pseudotradicional fabricada alhures da China. Em Singapura, mais concretamente.
No regresso a casa, os manifestantes começam a juntar-se no centro, obrigam o transporte a escolher vias alternativas, a despeito das tentativas das forças policiais para controlar a situação. A fúria nos seus olhares toldados pelos equipamentos de proteção individual, as pancartas, os gritos de “o oxigénio é alucinogénio”, as ramonas cheias de operacionais como frascos de azeitonas descaroçadas biomecânicas.
Uma sesta, uma máscara, uns cremes, uns telefonemas conducentes à resolução de conflitos de consumo pendentes e, finalmente, o jantar, do outro lado da cidade. Foi o último a chegar, já os convivas abocanhavam as vitualhas como se disso dependessem os destinos de um mundo terminal. Foi o trânsito, cada vez mais perturbado. O mais importante: toda a gente cheira bem, umas pessoas inclusive a baunilha. O jantar propriamente dito, quando chega ao fim a espera da praxe, vai ser um rôti de porc au miel, pornográfico na sua suculência, acintoso no odor que exala e se mistura com os cosméticos e em cuja travessa a anfitriã decidiu juntar, uns minutos antes do fim do forno, umas ervilhas, que se apresentam levemente tostadas sobre as batatas.
Como se atreve, sem ter antes perguntado? O que a levou a crer que as ervilhas, essa leguminosa repugnante, eram para toda a gente? O vinho frutadíssimo que serviu de apéro, conflitua com as tâmaras enroladas em bacon numa sopa azeda que lhe inunda as entranhas. Toda aquela travessa está contaminada pelas ervilhas, cujas escassas secreções se espalharam por todo o cozinhado. O que fazer agora, como explicar perante aquela multidão de uma dúzia que a sua identidade se construiu contra a ervilha, que aquela refeição é um crime contra a autodeterminação individual? Por que não uns pimentos, por que não nada?
Em vez de se sentarem e contemplarem aquela convulsão, os convivas fitam o ecrã de televisão curvo de cinquenta polegadas. A manifestação correu mal para uns e bem para outros. Foram chamados reforços do exército, as cabeças falantes declaram um estado de emergência informal, as autoridades só interrompem o silencio protocolar para proferir apelos à calma. Não é aconselhável sair à rua, especialmente na baixa. Suspeita-se que grupos antioxidação organizados e com o apoio das partes mais putrefactas da população desvalida estejam espalhados pela zona, prontos a incitar a sedição, o desrespeito pela propriedade pública e privada, dispostos a matar. Que raio de dia.