Esta peça podia ter muitos nomes. Nota explicativa. Prefácio. Contra a metáfora. A escrita irresponsável. Nasce de um desafio, e de três narradores que me acompanham. Nenhum deles tem a solução para os problemas que apresentam de forma brilhante, mas deixam pelo caminho migalhas de soluções. O problema revela-se assim:
“I realize that some of those whose arguments and speculations I have made use of will think I have gone too far — a few of them have told me so and, mercifully for me, others are no longer in a position to complain. They are no more responsible for what I have done with their ideas than I will be for what use others make of what I have written here.” James Scott, prefácio de “The art of not being governed” (2009)
Aqui está. O escritor leva-se demasiado a sério. Mas, depois de escrever não é, nem pode ser, responsável pelo que fazem do seu texto. O que acontece com o texto é trabalho do leitor, não do escritor. É o leitor que o anima. E é um alívio. É o que me permite escrever de forma irresponsável.
Vamos ao primeiro narrador. Sam Vaknin, diagnosticado como narcisista e psicopata, escreveu o livro “Malignant self-love: narcissism revisited”. Descreve-se como sendo uma máquina, não tendo ego e a empatia amputada. É um alien que se disseca a si mesmo. Constrói sobre Melanie Klein e elabora o problema de concebermos objetos internos que confundimos com externos. Sempre que há confusão, há grandes problemas.
Vaknin assume-se como um objeto internalizável. É um vampiro que está na minha cabeça e, como os vampiros, só entra onde é convidado. Abri-lhe a porta porque, com a quantidade de lixo semiótico com que somos bombardeados todos os dias, sabe bem ter uma sanguessuga terapêutica que, enquanto se alimenta, diz: “cuidado: produto tóxico”. Ambos sabemos que, uma vez na minha cabeça, ele não tem nada a ver com o que lá se passa. Isto são as barreiras mentais a funcionar — a consciência de que um objeto externo e um objeto interno são diferentes. Penso que há um Vaknin real de onde vem a imagem, mas não faz parte da minha vida. Não o conheço nem é meu amigo.
Eu sou certamente um objeto que outras pessoas podem internalizar. A minha escrita também. E não é por isso que as pessoas passam a conhecer-me, mesmo que possam ter a sensação aproximada do que é estar na minha cabeça e ser eu.
Espero ter deixado clara esta distinção: ela é fundamental para se saber ler. Apesar de eu comunicar ao escrever, por mais que explique o que quero dizer, não há garantia nenhuma de correspondência com o leitor. Porque é um ser que interpreta. Como nota explicativa, deve ler-se, antes dum texto: eu não sou os meus leitores, nem os meus textos, nem eles são eu.
Robert Sapolsky, neurobiólogo e primatólogo, é o meu segundo narrador. Escreveu Behave – humans at their best and worst, que explica como funciona a mente neurotípica. É assustador. Um dos capítulos é dedicado à metáfora. “As pessoas estão dispostas a matar e morrer por um cartoon, uma bandeira, uma peça de roupa, uma canção. Temos explicações a dar”, diz-nos.
Enquanto Vaknin descreve os significados atribuídos a uma bandeira como uma psicose coletiva, Sapolsky acentua esta loucura ao dizer que se trata de um ato normal do nosso cérebro. Vaknin corrobora: a grande maioria das pessoas escolhe a solução psicótica para o dilema da existência. Escolhem animar objetos internos que externalizam, para os quais transferem todo o significado, como o conceito de deus, ou estado-nação, subsumindo-se no processo. As pessoas que não aderem a esta solução seguem a via narcisista: engolem o mundo todo e só interagem com objetos internos. Literalmente, objetificam todos os seres vivos, obrigando-os a comportar-se como os representaram. Por isso defende como solução improvável o nadismo — nothingness, que consiste em descobrir onde é que o mundo acaba e nós começamos. Só então poderemos reconhecer, e respeitar, os outros seres pelo que são, não só como os representamos.
Seguimos para o terceiro narrador. Eduardo Kohn, no livro How forests think, construído sobre o pragmatismo de Charles Peirce e a ciência cognitiva de Terrence Deacon. Segundo eles, nós somos interpretantes — o resultado dum processo semiótico de representação de signos contínua. Somos um efeito das nossas interpretações e palpites de futuro. É assim que nos materializamos.
Por tudo isto, por que é que sou contra a metáfora? Declaro que sou contra a metáfora apenas quando esta passa por cima da matéria. Quando não aprendemos nada com as imagens que estamos a evocar. Quando as usamos como um trampolim para outra coisa. Gosto de aprisionar as pessoas na metáfora. Que se demorem nelas. Convidá-las à prova e à incorporação. A transformar as metáforas em metamorfoses. A habitarem outros corpos momentaneamente, de forma quase xamânica. Quem sabe, talvez desenvolvam alguma outra forma de empatia neste processo, por coisas que regra geral, só pretendem esmagar.