— Então qual o tema que escolheu para a nossa conversa de hoje, dr. Pichón? (prazenteira)
— Lembrei-me de falar no robe. (a medo)
— O robe!? (espanto e silêncio de espanto) — Será um tema de Pais e Filhos?
— Sabe, Madalena, estas entrevistas chamaram-se Pais e Filhos porque o editor achou bem. Mas podiam chamar-se Casa e Jardim, sei lá. A ideia era falar de artefactos do quotidiano, de uso comum, relativamente aos quais fosse possível estabelecer pontos de vista, como direi, não normativos.
— Muito bem, dr. Pichón. E está seguro que o robe é um desses…artefactos? (irónica, pronunciando robe com pinças cautelosas)
— Não sei, mas se estiver disponível para começar, logo veremos.
— Confesso que não é tema que me seja familiar, mas longe de mim contrariar as suas escolhas. Estamos a falar do robe de chambre? (dizendo chambre com a ponta dos lábios esticados)
— Nem mais. Dessa peça de vestuário de interior. Usada desde o século XIII em França, de onde veio a palavra, também.
— Século XIII? (como quem exclama “há tanto tempo!”)
— Sim, é nessa altura que no Ocidente, sobretudo na luxuosa corte de Borgonha, da qual fazia parte a Flandres, se abandonam pouco a pouco as túnicas medievais e aparece o que se poderia chamar uma proto moda, que tem a nova classe mercantil como cliente e reflete as mudanças trazidas pelas Cruzadas.
(O dr. Pinchón para, aguarda uma intervenção da jornalista e, como ela não surge, retoma a incursão histórica)
— Esta moda, se disso se trata, foi divulgada sobretudo a partir do século XVIII pelas mulheres de famílias com posses. Podiam vesti-lo à noite, sobre a roupa de dormir, protegendo-se do frio e mantendo um aspeto elegante. No século XIX e início do século XX vulgarizou-se e diversificou-se, quer nos tecidos que utiliza, quer nos feitios.
— Interessante. (condescendente)
— A utilização foi sobretudo para dois momentos distintos: levantar e deitar. O corte era largo, cobrindo os ombros e o dorso e fechando à frente, com botões, ou cruzando e apertando com cinto. Permitia esconder a intimidade da camisa de noite, com a qual fazia par obrigatório, mas ao mesmo tempo conservar um porte requintado. Algumas regras foram sempre mantidas: as mangas sem botão, de preferência largas; o comprimento abaixo dos joelhos.
— Qual a altura em que se vulgariza?
— Em França, a partir da década de 30 do século XX, o robe aparece nos grandes armazéns, como a Samaritaine. O seu uso é regulamentado. Tem vários modelos, consoante o público e a utilização. O robe de chambre para entrar e sair da cama. O robe de trazer por casa, que uma vizinha da minha casa de infância usava por imposição do marido, um caixeiro-viajante ciumento, que queria ter a certeza de que ela não se ausentava. O robe de trazer por casa foi uma espécie de precursor do fato de treino que as classes populares viriam a adotar, para o relaxamento do fim de semana.
— Se isso é piada, doutor, não sei se gosto.
— Oh Madalena, só agora reparei no que traz vestido. (surpreendido) —Fica-lhe muito bem, por sinal.
— Adiante, dr. Pichón, insista nessa tecla e será mansplaining. (ameaçadora)
— Nem por sombras. (apaziguador). A minha mãe usou robes quando os tecidos novos irromperam, substituindo o linho e a lã e permitiram uma multiplicidade de feitios. Robes acolchoados, de tecido esponja, de nylon. Olhe, o nylon foi a grande revolução nos tecidos, não sei se sabe. Quando nos finais dos anos 30 um senhor chamado Wallace H. Carothers criou, para a companhia química americana Du Pont, esse tecido revolucionário, tudo mudou. Foi uma verdadeira revolução. E depois as poliamidas, o poliuretano… tudo isso permitiu tecidos com bolas, chevron, corações, estrelas, lisos, riscas, xadrez e outros de pele sintética, jacquard, veludo, esse confortável polar do seu fato de treino…
— Doutor…(interrompendo)
— Não se agaste assim. Desculpe a curiosidade. A Madalena não usa robe?
(silêncio, constrangimento, o dr. Pinchón mexe-se, pigarreia, interroga-se sobre se terá ultrapassado alguma linha vermelha do código deontológico das jornalistas e dos jornalistas, depois prossegue, receoso)
— Ou usou, em circunstâncias diferentes da sua vida?
— Uso roupão para o banho. De turco, se quer saber. Com capuz. (subitamente loquaz). E já usei robes de seda. Curtos, acima do joelho. Vermelhos, da cor do sangue. (depois de uma pausa, mudando o tom de voz). Acaso Alejandra Pizarnik usaria robe, dr. Pichón?
(nova pausa, após o que se ouve a voz cansada do dr. Pichón)
— Não sei. Mas Berta Isla, nos anos 70 em Madrid, lembro-me bem que usava um albornoz curto e no auge de uma discussão com Tom, este, despropositadamente, tentou puxar-lhe pelo cinto, ou olhou-a “com surpresa apreciativa ou inconfundível admiração sexual”. Acho que foram estas as palavras exatas.
— E ela gostou de ser vista como “objeto de satisfação”?
— Ela escreveu que era “aborrecido, para não dizer tão vexatório, deprimente e desolador, nunca ser vista assim.” E sentiu-se lisonjeada. “Halagada”, escreveu ela então.
— Isso foi em Madrid, há 50 anos. Ou em Buenos Aires. Ou em Paris. Hoje eu preferia que não me olhassem assim, em nenhum desses lugares.
— Sim, claro. Faz bem em lembrar. Mas a natureza do vestuário não mudou. A mensagem ambígua que transporta. Essa duplicidade, que vem de tempos imemoriais. De ocultar e de revelar. O robe, se a ele podemos voltar. Ocultar essa camada primeira do corpo que era a camisa de dormir. Mas, ao mesmo tempo, chamar a atenção para ela. Existir, porque ela existe. Mostrar-se, para ela não ser vista. Ser largo, porque ela podia ser justa. E depois multiplicar sugestões, desde logo através da seda, esse material que se molda e imita o corpo, por debaixo. Ou brilha e reflete.
O robe é uma peça do vestuário que… apesar da apropriação burguesa que os catálogos da Samaritaine, da La Redoute, ou hoje da Amazon, sem cessar reproduzem, ou da alusão de sedução mercenária, ou do uso consumista, ou da doméstica vida submissa, conserva, como todo o vestuário, uma parte de subversão e transgressão.
— Está a esmagar, dr. Pinchón. (irónica) — Espero que não veja qualquer ambiguidade no meu sportswear. E a Pizarnik?
— A Pizarnik, se não se importa, fica para outro episódio.