Nota do editor:
O espaço que se segue, uma fusão da Betoneira com a Rádio Osso, é da responsabilidade da parceria luso-argentina Luís-Enrique, a que somos alheios.
Pelo incómodo pedimos desculpa aos prezados leitores.
Excerto do programa da Rádio Osso em que Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. (gravação dos Arquivos de Hélio Barata, com a anotação Misoginia/ Pichón R./ 17.02.2022)
— O Sapolsky (Sapolsky, Comportamento, A biologia humana no nosso melhor e pior, Temas e Debates, 2018) é uma fonte inesgotável de sabedoria. O tamanho dos dedos da mão, especificamente do segundo (D2), o indicador, e do quarto dedo (D4), o anelar, dependem da exposição precoce do feto à testosterona. As mulheres adultas tendem a ter dedos indicadores (D2) mais longos, quase do tamanho do anelar (D4). Como os seus, sim, Mariana, agora que os estende assim. (Pichón, sem surpresa. Da mesa de som, Hélio Barata, estende o pescoço com curiosidade) — Os seres humanos masculinos têm uma diferença mais acentuada na dimensão destes dois dedos, isto é, têm um índice D2/D4 mais elevado. E essa diferença varia com a quantidade de exposição fetal. (o dr. Pichón furta instintivamente as suas mãos do olhar de Mariana. Hélio Barata olha para as suas e sorri, reconfortado com o que vê. O dr. Pichón continua) — Alguns estudos pretendem que as diferenças na relação D2:D4 estão associadas a níveis diferentes de agressividade, a interesses diversos relativos a ocupações não profissionais, a algumas doenças psiquiátricas e à incidência de dor.
— Que grande salto sofismático! E isso tem alguma…
— Plausibilidade? (o dr. Pichón está a consultar umas notas escritas e mostra-se levemente contrariado por ser continuamente interrompido) — A plausibilidade desta relação é a ideia de que os genes hox, que regulam o tamanho dos dedos, são os também responsáveis pelas gónadas. Em 2010, William Byne escreveu o capítulo intitulado The Sexed and Gendered Brain, da segunda edição do Tratado de Medicina Específica do Sexo, de Marianne Legato.
— Marianne?! Uma mulher escreveu um tratado de Medicina Específica do Sexo!?No século XXI!
— Sim, não percebo o seu espanto. E já vai na segunda edição, como disse. Nesta edição, ele proferiu, com autoridade, a frase: (voz de citação) estes genes (hox) influenciam os genitais e não as gónadas, e por isso não se espera que influenciem o nível de androgénios pré-natais.
— Um momento, Enrique. (Mariana, pensativa) — Qual é mesmo a distinção entre genital e gónadas?
— Boa questão, Mariana. (Pichón parece surpreendido) Penso que eles chamam genitais aos órgãos sexuais externos, tal como se apresentam anatomicamente, morfologicamente. E gónadas aos órgãos produtores de gâmetas e de hormonas sexuais.
— Sim, é possível. O Enrique aproveitou esses estudos na sua clínica? (risos)
— Passei, apesar de tudo, a incluir uma observação mais cuidadosa das mãos no exame clínico dos meus pacientes e a anotar as diferenças.
— Mas o que fez com esses registos? Acredita que eu sou mais feminina porque, enquanto jovem feto, não fui banhada por testosterona? E que isso se percebe no comprimento do meu dedo indicador? (pausa) — Pior do que isso, o Enrique acredita que ao olhar para o meu indicador está a ver os meus genitais?
(Hélio Barata, na régie de som, olha de relance para o botão rosa aberto da camisa de Mariana)
Fausto,
Queixas-te de que passas as noites em branco. E de que se ouve a pulsação do Mundo. O ruído de fundo que ouves de madrugada, umas noites quase impercetível, outras como se fosse a respiração da cidade, ou um zumbido longínquo das máquinas que decerto continuam ligadas, é afinal uma criação do teu ouvido interno. Essa emissão otoacústica é sexualmente determinada. São os homens que ouvem este ruído de fundo. Ouvem-no mal, mas distintamente, se prestarem atenção. Este ruído está para a masculinidade como a radiação cósmica de fundo está para o Universo. Vêm da criação. Nós homens, partilhamos este ruído subtil com outros mamíferos e todos os primatas. Por que razão não confessamos que o ouvimos? Ou quando o fazemos é através de metáforas poéticas? Carlos de Oliveira: a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. Não é a insónia. É a tua inconsolável masculinidade.
Enrique
Hortense,
Não sei se tens acompanhado as entrevistas que uma simpática jornalista da rádio Osso me tem vindo a fazer. Ando a tentar abordar, com ligeireza, alguns temas que, a crer nas tuas crónicas, te interessam. O livro do Robert Sapolsky, Behave, é um manancial de sugestões. Eu sei que trabalhaste com ele em Stanford e calculo que seja um biólogo das tuas preferências e, atendendo a que tem 64 anos, te deva interessar também como pessoa.
Nas minhas leituras confirmei que o orgasmo apaga o córtex frontal e deixa o sistema límbico à solta. O córtex frontal é, nas palavras de Sapolsky, a região mais recente e evoluída do cérebro humano, a sede das virtudes e da razão. Uma amígdala à solta é uma coisa muito perigosa. O prazer que retiras da tua escrita morticial deve-se a que, ao escrever, o teu córtex frontal se apaga progressivamente. Charles Whitman, um dos primeiros autores de massacres em escolas norte americanas, tinha um glioblastoma que lhe comprimia a amígdala. O apagão do córtex frontal deve resultar da hipóxia que o desvio priápico do sangue origina. Clitoridiano, também. Vou explicar. Na ereção uma quantidade razoável de sangue dirige-se para os genitais. Enche as estruturas esponjosas e fica nelas retido. Represado, como dizem os brasileiros. Isso só é possível pela redistribuição do sangue que o sistema nervoso autónomo opera na autoregulação. O que sobra para a tumescência, falta no cérebro, sobretudo no córtex frontal. É um momento em que questões como a honestidade do trabalho e a moral protestante deixam de fazer a diferença. Não se pode ser todo o tempo e ao mesmo tempo Descartes e Casanova. Isso explica a hipocrisia dos códigos vitorianos e a falência das prescrições ligadas ao sexo. Nem todas as ereções são voluntárias e, tal como nas enxaquecas, não controlamos os fluxos de sangue cerebral. Na detumescência, regressam a razão e as funções sociais. Não podemos apontar o céu e falar da profundidade do seu azul.
Enrique
Notas do caderno do dr. Enrique Pichón R., com a anotação “Para as entrevistas da Rádio Osso”.
O funcionamento de áreas cerebrais importantíssimas, e não apenas do seu funcionamento, mas da sua própria morfologia e dimensões, da morte celular programada de muitas células, dos seus circuitos de conexão e mielinização é determinado por hormonas produzidas pelas gónadas. Isso explica a adolescência, o período da vida humana entre a infância e a vida adulta, que, como se sabe, adquiriu no Ocidente atual uma dimensão e uma duração sem paralelo na história conhecida da humanidade. Há uma diferença fundamental entre a fisiologia da adolescência masculina e a feminina. A produção de testosterona é fundamental para a diferenciação masculina do feto e depois, durante a vida reprodutiva. O hipotálamo controla a produção de androgénios nos testículos através de um factor de regulação chamado GnRH, que liberta em pulsos cada 1 a 3 horas. A partir da puberdade, e apesar da libertação pulsátil de GnRH os níveis de FSH and LH, as hormonas hipofisárias que regulam a produção de hormonas sexuais, têm níveis plasmáticos razoavelmente constantes. Sobretudo sob a acão de LH, as células de Leydig dos testículos adolescentes, libertam testosterona responsável pelo aumento do tamanho do pénis e pela libido, e por efeitos chamados secundários, como mudanças vocais, crescimento linear, aumento do volume muscular e eritropoiese. A testosterona atua em todas as células do corpo, incluindo as células neuronais. É responsável pela ação descrita como “a hipótese do desafio” (the challenge hypothesis) por John Wingfield , que Sapolsky considera a maravilhosa concetualização unificadora da sua ação: a testosterona aumenta a agressividade apenas em momentos de desafio.
Na mulher, as hormonas hipofisárias LH e FSH promovem a produção de estrogénios e progesterona pelos ovários. Esta produção decorre de forma cíclica, desde a menarca à menopausa. Estes ciclos têm duração irregular, entre 25 e 36 dias. No decurso destes ciclos há perdas periódicas de sangue, dito menstrual, que duram à volta de 5 dias e cujo volume oscila entre 15 e 75 ml. Uma percentagem variável de mulheres, dependendo das culturas, têm alterações do humor referidas como SPM, síndrome pré menstrual ou disforia pré menstrual (PDPM). Em 1960 a FDA aprovou a pílula anti concepcional. A pílula foi introduzida em 1961 no UK, inicialmente apenas para mulheres casadas. A ação das hormonas sexuais no cérebro é difícil de determinar, mas, genericamente, diz-se que regulam o comportamento sexual.
Mais de 100 milhões de mulheres usam agora a pílula, suprimindo parcial ou completamente o ciclo normal.
A questão que devo explorar é: que repercussões teve, na vida familiar, profissional, académica, política, o aparecimento súbito de milhões de mulheres não-cíclicas. Mulheres que regulam a sua fertilidade, a sua sexualidade e, pela primeira vez na História, deixaram de ter a sua biologia cíclica.
Avisar previamente Mariana desta intenção. Dar-lhe tempo a que se prepare. Avisar igualmente Fausto e pedir opinião a Mortícia. Será que se trata de uma falsa questão? De um ponto de vista excessivamente biologista? Estarei a criar divisões no campo das mulheres?
Enrique,
O desvio priápico do sangue, como escreves, é uma metáfora. Assim o espero, pelo menos. Se fosse só priápico não havia de ser necessário muito sangue. Eu fico pletórica da cabeça aos pés. Do pescoço aos pés, concedo. Do tronco cerebral aos pés, vá lá. Uma vez fizeram-me uma termografia numa situação dessas. O corpo estava vermelho. Todos os tons de vermelho da escala Pantone. Com o warm Red no centro. Um farol. E a cabeça era azul. Frio, frio. Gelado. Um retrato a cores da petite mort. Não se pode escrever sobre aquilo um relato subjetivo. Porque o sujeito não está lá, enquanto mente distinta e capaz de percepção e registo. O córtex está em serviços mínimos. O suficiente para perceber que o corpo é matéria da natureza e que o clima é tropical húmido. Dizem que o Barthes escreveu que algo igual acontecia na fruição literária. La petite mort, a ler um livro. Tinha de ser um texto que demorasse 20 minutos a ler.
Outro dia falavas de um livro da Sally Rooney. E detinhas-te numa passagem em que ela, ou um personagem do último livro dela, discorre sobre a natureza sexual de uma relação. Não tenho o livro comigo. Mas já li. Acho que ela diz que uma relação fica ou não impregnada de sexualidade, independentemente das pessoas tencionarem envolver-se. Achei muito interessante. Tive um amigo que era surrealista porque o surrealismo era um estado de alma, uma maneira de estar na vida, um ponto de vista, uma orientação estética.
A sexualidade é a mesma coisa. Ou se tem ou não se tem.
Nesse sentido sou uma pansexual. Não apenas vejo sexo em todas as coisas como todas me excitam e em muitas vejo a possibilidade de morrer um pouco. Não devia escrever isto? Nem tu lês.
Hortense
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Enrique,
Acompanho as tuas entrevistas na rádio Osso. Pérolas a porcos, é o que tenho a dizer-te, comparado com os restantes programas que para aí andam. O fraquíssimo sucesso do programa e a insistência da rádio em continuar com ele mostra que tem uma orientação claramente futurista. Não responde ao público que existe, mas sim ao que quer que exista. Mais do que psiquiatra, estás a tornar-te num parteiro.
Gosto do Robert, nunca me relacionei muito com ele como pessoa, louvo o trabalho que está a fazer na biologia. Tristemente, a biologia fragmentou-se e perdeu o seu objeto. Apesar da maioria dos problemas planetários terem como denominador comum o que estamos a fazer à diversidade de seres vivos na Terra, já não se acha de bom tom perseguir questões como o que é afinal a vida, em que condições pode extinguir-se, e o que surge depois. Optou-se por um caminho falsamente determinista, com o dogma central da informação genética claramente falhado nas suas promessas, mas continuado com um fervor tal perante os fracassos que só pode ser justificado por uma fé religiosa numa ciência que se tornou, infelizmente, numa pseudociência.
O Robert alimenta um campo interdisciplinar que me parece promissor. É o das ciências cognitivas. Aqui encontram-se várias disciplinas improváveis: psicologia, inteligência artificial, antropologia, filosofia, linguística e biologia – pela via das neurociências.
O interesse neste campo é precisamente o do comportamento humano. Vivemos numa distopia behaviorista, onde a obsessão por dominar e submeter as massas nunca foi tão grande. O Robert trabalha no fio da navalha: a tensão entre o determinismo e a contextualização. No fundo, a nossa magra margem de manobra enquanto espécie.
No entanto, há que lê-lo com cautela. Temos de ter em conta que trabalha com um ser humano abstrato. Muitos seres humanos foram apagados para a construção deste ser médio de que ele fala. Esta é a sua contradição interna: há sempre traidores a esta narrativa. Há sempre desvios estatísticos. Mas os desvios confirmam a existência do que é dominante, pelo menos num dado tempo histórico.
A tua preocupação com a biologização das mulheres é legítima. Mas talvez a reformule. O problema não é biologizá-las, mas sim determiná-las. O ato de determinação é o alfinete das borboletas. Tenta, precocemente, imortalizá-las numa tábua, através da imobilidade. Pode-se observar a beleza das suas asas e dos seus corpos, mas nunca a beleza do seu voo.
Em Outubro de 1978, Gloria Steinem escreveu o mítico ensaio “se os homens pudessem menstruar”. Nesta sátira ela menciona como a perda de sangue seria certamente considerada uma virtude, e a incapacidade de o fazer, humilhada e discriminada. Devemos revisitar a importância do sangue na medicina. Devemos observar a paródia que foram as sangrias, e como o roubo do sangue era visto como uma necessidade médica, em detrimento da sua perda natural, vista como uma maldição.
Querido Enrique, quanto mais te aproximas das mulheres, mais te tornas numa. Não serei eu a polícia das fronteiras. Não serei eu a definir as afinidades e diferenças que partilhamos com as outras espécies de primatas, e as outras espécies em geral, e o que entendemos como as categorias de masculino e de feminino com que pensamos o mundo.
Não te deixes apanhar pelos conceitos dos outros. Interroga-os. Ouve o teu corpo. Regra geral não gostamos de o ouvir, mas ele manifesta-se de forma involuntária aos desígnios tão nobres do córtex frontal. Não te esqueças do António, o Damásio: o córtex frontal não consegue valorizar sem sentir na carne. Não consegue escolher entre opções igualmente boas. Sem corporalizar, não conhece o mal.
O mesmo se aplica à sexualidade: para ter sexo só é preciso arriscar interações com outros seres. O sexo é uma negociação de fronteiras. Lembra-te do princípio de Francis Underwood: tudo é sobre sexo, exceto o sexo, que é sobre poder.
Espero-te na Osso.
Morticia