Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. | T2 E7
— Enrique, hoje o diretor de programas avisou-me de que tínhamos pouco tempo para o programa. Por isso vou direta à questão do dia: para si, qual é o sentido da vida?
— Mariana, que pergunta! (pausa) Ando justamente a ler um livro que aborda este tema. O autor é Daniel C. Dennet, um dos mais poderosos pensadores contemporâneos. Nasceu em 1942 e tem investigado a consciência. O seu último livro, From Bacteria to Bach, and back, que data de 2017, culmina 50 anos de trabalho. E é um pináculo da cultura humana, um monumento de saber, reflexão, inteligência, capacidade de grandes sínteses e simplificações.
— Não me parece que isso dê para o programa de hoje. Mas podemos continuar.
— Logo no início, Dennet faz um voo sobre a evolução da vida humana: a vida surgiu cedo, neste planeta. Há quase quatro mil milhões de anos. Durante os primeiros dois mil milhões de anos os seres vivos eram procariotas. Bactérias e Arquea. Seres de uma só célula, sem núcleo bem individualizado. Há dois milhões de anos, dois destes seres colidiram. Já tinha acontecido muitas vezes anteriormente. O resultado era que uma célula engolia a outra. Destruía-a. Comia-a.
— Gosto dessa imagem de dois seres unicelulares a comerem-se. Sobretudo com esses nomes giros. Arquea procariota. Essa comeu ou foi comida?
— Precisamente. Habitualmente uma comia a outra e usava as suas partes para produzir energia ou fortalecer a sua estrutura. Mas este foi um encontro diferente. A Bactéria que engolira a Arquea não a destruiu. Incorporou-a no seu corpo. E com isso fortaleceu-se. Passou a ser capaz de armazenar mais energia, a ter mais sucesso reprodutivo, a organizar a sua estrutura de outra forma mais elaborada.
— Isso parece a primeira revolução da vida.
— Uma revolução e uma aceleração enorme que permitiu o aparecimento de novas espécies. E outras se seguiram. Se dermos um salto prodigioso no tempo, podemos deter-nos num momento crucial da nossa história. Há 10.000 anos, um pequeno período de tempo, de apenas 500 gerações, no começo da agricultura. Segundo os cálculos que em 1999 Paul MacCready… fixe este nome.
— Paul MacCready. Já fixei. Foi uma pessoa recomendável?
— Sim, um engenheiro aeronáutico norte-americano, o construtor do Gossamer Albatross.
— Um avião de brincadeira movido a energia do tripulante, que atravessou o Canal da Mancha?
— Exatamente, Mariana. Um avião cujo combustível era a energia de um homem que pedalava no seu interior. Estava a dizer que segundo MacCready, a população humana, com o gado e outros animais da sua órbita, constituía apenas 0,1 % da biomassa de vertebrados, há 10 000 anos, no começo da Revolução Agrícola.
— Zero vírgula um por cento?! (dramatizando o espanto)
— Hoje a estimativa é de 98%, sendo maioritário o gado que criamos para satisfazer o nosso apetite inesgotável por carne.
— Maturada, não é, Enrique. T-bone, alcatra, acém, cachaça, lombo, lombinho, pojadouro, chão-de-fora, rabadilha, aba, prego do peito…
— Chega, Mariana, já percebemos o seu entusiasmo. (pigarreando para recomeçar) —Para muitos, o início da Agricultura marca o começo do Antropoceno, uma nova era geológica marcada pelos efeitos do Homem nos ecossistemas terrestres, com a mundialização e a homogeneização das paisagens, a alteração do clima, a extinção acelerada de espécies e da biodiversidade.
— Extinguimos 50% das espécies, desde o início do Antropoceno. E 80% das espécies selvagens. Eu sei. O meu namorado passa o tempo a dizer-me. Mas a pergunta é: Esta é a sua narrativa genesíaca, já percebemos. Mas o que lhe diz que a sua é melhor do que as outras?
— Oh, a geocronologia, a estratigrafia, a paleontologia… (o dr. Pichón parecia aguardar a questão)
— Quer dizer que um conjunto de disciplinas científicas lhe permitem uma narrativa que explica, com plausibilidade, a marcha da vida no planeta. E depois?
— Depois? Posso imaginar esse tempo infinito. Mais de quatro mil milhões de anos. Mais tempo do que a nossa imaginação pode conceber. O tempo para a matéria de que a Terra é feita ter toda a espécie de combinações, até que uma delas produziu moléculas capazes de se alimentar e reproduzir.
— Esse tempo infinito, em que aparentemente não se passa nada, faz-me vertigens, Enrique.
— Espere. Como num filme acelerado, na sua vertigem, Mariana, começam a desenhar-se épocas, períodos de avanço, de aparecimento de formas cada vez mais complexas de vida, com vantagens sucessivas, que lhes permitem multiplicar-se e ganhar alguma hegemonia.
— E períodos de extinção, calculo.
— E novas combinações. A maior parte destinadas ao fracasso, outras com tremendo sucesso.
— Até que, nos últimos segundos desse filme, surgimos nós, Ta ta ta tam!
— Até que nos últimos segundos desse filme, surge um vertebrado que descobre uma forma de captação de energia que lhe permite dominar e transformar a Terra. Crescer desmesuradamente, queimar tudo à volta, criar sistemas económicos e políticos intensamente destrutivos.
— E nas últimas frações de segundo surge a tal Era Antropocénica? (Mariana faz voz de criança medrosa)
— Há quem coloque o início da Era Antropocénica no período em que, na Mesopotâmia e em outros lugares do Mundo, começou a Revolução Agrícola, a domesticação de espécies vegetais e animais. Mas há quem diga que o começo é tão recente como o final da Segunda Guerra Mundial, ou o dia 6 de agosto de 1945, em que o Enola Gay, um Boeing B-29 usado como bombardeiro, despejou a primeira bomba atómica sobre uma cidade humana.
— E qual é o sentido disso tudo? (Mariana, apontando para o relógio)
— O sentido disto tudo, Mariana, é isto não ter sentido nenhum.
— Estava à espera dessa frase brutal. A vida não tem sentido nenhum. A minha vida não tem sentido? O meu namorado não tem sentido. Este emprego, este programa, esta entrevista, não têm sentido.
— Não consigo ver nenhum sentido neste filme, seja qual for a velocidade com que o passe. Por detrás dos acontecimentos está o acaso, aquilo a que chamamos a matéria em movimento incessante, os arranjos e rearranjos dos diversos elementos, as reações entre eles, até aquilo a que chamamos vida. E depois uma sucessão de seres com mais ou menos êxito e uma atividade incessante. A de incorporar matéria e reproduzir-se. Comer e multiplicar-se.
— Comer e multiplicar-se já me parece um sentido aceitável para a vida, Enrique. (condescendente) Há quem veja um milagre em vários momentos da sua narrativa genesíaca, como por exemplo no aparecimento de uma mistura de moléculas capazes de se reproduzirem de forma estável. Chame-lhe design inteligente, por exemplo. Uma força capaz de juntar milhares de peças num trabalho comum, com um resultado.
— Dennet utiliza a perspetiva da engenharia reversa para demonstrar que a intervenção desse designer não é necessária. Que cada ser vivo complexo é o produto de processos físicos não-misteriosos, gradualmente reunindo elementos aperfeiçoados pelo tempo.
Seja como for, ao longo da evolução, foram surgindo sujeitos com um sistema de orientação no ambiente a que chamamos sistema nervoso. Esse sistema foi evoluindo até permitir um conhecimento de si próprio e da forma de constituição e organização da matéria. De produzir ideias sobre as coisas. Ideias de causalidade. Ideias de explicação da natureza. A maior parte dessas ideias, procedentes da mente dos humanos, são antropomórficas e antropocêntricas.
— Tudo existe para o nosso serviço, não é? Já uma vez falou disso. As árvores para nos dar a sombra, a madeira e os frutos. Os touros para a tourada…
— Essas ideias simples e que agora lhe parecem infantis são, no entanto, a base da coesão social, e estão continuamente a renascer com novas formas e poder atrativo.
— Mas existe uma superioridade humana, não lhe parece evidente. A excepcionalidade humana. Não é de bom tom referi-la, mas existe, não?
— Não sei se existe. Não me parece o momento de a debater. Mas, caso exista, não vejo nenhum sentido na superioridade humana. Não acredito que a evolução tenha parado no acidente humano. Que no Antropocénico se consiga parar a extinção acelerada das outras espécies, a acumulação de lixo, a incorporação de plástico nos alimentos e a partir daí nos próprios corpos humanos, o crescimento como meta e desígnio, sistemas políticos e económicos criados por elites que dominam o conhecimento e as riquezas e que se reproduzem para assegurar a permanência da sua dominação.
— Enrique, podia acabar com uma nota otimista. (Mariana com voz verdadeiramente triste)
— A descrença absoluta de um sentido transcendente da vida não me faz infeliz. Eu sou feito de uma matéria que respira felicidade. Estas questões não ocupam a centésima parte das minhas preocupações. Entre o livro de Bennet e outros semelhantes vejo séries, filmes, leio outros livros, encontro pessoas maravilhosas como a Mariana. O meu dia a dia é feito de despertares luminosos. De manhã encontro pais que vão levar os filhos à escola, mulheres que se levantam cedo para o trabalho doméstico, pessoas que limpam as ruas, ouço os pássaros nas árvores que escapam ao abate. E tudo me enche de uma grande felicidade. É a matéria de que fui feito. O sentido da minha vida é estar a falar aqui consigo, Mariana, da falta de sentido disto tudo.
— O sentido da minha vida é acabar este programa dentro do horário e a tempo de beber um copo com o meu namorado, que não ouve nunca a Rádio Osso.