Número 37

27 de Janeiro de 2024

O DESPLANTE

O terror ao longe

FREDERICO MARTINHO

Ao longe, onde cintilam os feixes brancos, quebra-se a geada nos rumores de um terror iminente. Refiro-me à incandescência de Janeiro: não há frio que tanto brilhe. As tardes, as míriades de partículas na chuva, a promessa das noites cada vez menores, tudo contribui para uma sensação de amanhã mais límpido. Claro, tudo não passa de um projecto fotográfico filosófico falacioso; tudo começa e acaba na abertura de uma cratera no teu rosto, e desaparece na fuligem do tempo impossível. A ilusão dos ciclos serve para nos ajudar a obedecer aos sinais. Não há operário que não se encontre no horóscopo, já que há muito colocou a luta nas mãos do destino. O terror virá. O terror virá, não pela preguiça com que bebemos o bem, mas na bagagem da nossa confiança nos automatismos ― quando foi a última vez que desmontámos um texto? Refiro-me à condescendência das ideias: não há músculo que tanto desista. Os corpos eléctricos, a avidez nos teus olhos, o desaparecimento do mundo atrás do ardor dos meus. Escutamos o que nos dizem as notícias: a mercadoria avança sobre a vida ― chamam-lhe autodefesa. É uma questão de economia da imaginação. Beija-me, pequena guerreira, para que o meu coração descanse na cama, urdindo a fuga de mais um dia cúmplice de um delito chamado êxito. Abraça-me, para que esqueça a máquina que montámos sobre a paisagem, esse artefacto que morde a terra e lhe mastiga a pele. O terror veio, arrastando consigo os trapos de seda, linho e outros têxteis, ecoando nas ruas as lamentações dos que morreram para que pudéssemos escolher a melhor terrina, ao melhor preço. Refiro-me à decadência da cidade: não há inércia que tanto vibre. As lojas fecham para sempre e o Inverno tomou conta de tudo o que fica fora do teu ventre. E ei-los, os seus habitantes. Os habitantes do teu subúrbio, do fora-de-ti, fora de onde me permites estar, aprendendo a viver feliz num arco de tristeza, a dissecar a compressão do espaço-tempo, a compreender que o movimento é quase tudo, que a direcção é o que o define ― e o teu cheiro é o que resta preencher. Ei-los a patentear a paz e o progresso como se pudessem fazê-lo sem o teu aval, sem o teu amor. O terror chegou, disfarçado de miragem, imperceptível para uns, devastador para outros. Nós sabemos que ele nos atinge quando já não vemos além do fim, quando não o conseguimos contornar, quando o grande final nos é vendido como solução. Chega-te a mim, mulher-soldado, e crava o olhar no limite da distância, e espreita ainda por detrás dela, e insiste nesse horizonte, e diz-me, a quantos tiros sobreviveremos. Quão feridos seguiremos no desvario que é amar nas armadilhas da Era da Informação. Estende-me a manta, porque é Janeiro, e está frio, e os dentes batem uns nos outros como os pensamentos, pequenos desastres. Refiro-me à pertinência do que escrevo: não há crónica que tanto omita. Se por um lado nos enquadra numa espécie de cenário fatal, no qual nos habituámos à precariedade da vida, vítimas na procura do paradeiro da sua inocência, por outro, parece que pousa uma navalha ao lado da outra, num conjunto de resoluções de ano novo, indecisos entre nos tornarmos beligerantes ou pacifistas, seres cabisbaixos ou seres zangados, filhos do Sol reinante ou filhos de um deus menor. Debruçámo-nos sobre nós, e constatámo-nos na mesma abstracção. Crentes na promessa da política, mas certos de que os glaciares desaparecerão até não restar uma única mulher à face da Terra. Convictos na utopia como a mais palpável das auroras, sabendo que rareiam as alucinações e os descendentes fiéis às bandeiras vermelhas. Sujeitos a viver a cegueira dos dias infinitos, adormecemos nos olhos um do outro. Refiro-me à reticência da uma porta a fechar a madrugada: não há som que tanto abale. Nem morcego que cinda tamanho breu ― tamanho eu. Bem-vindo terror, escurece o mundo sobre nós. Cobre as árvores do teu petróleo azul. Diz aos comunistas que anoiteceu. Solta os gatos pretos na vigília e abana as sombras nas janelas, que nós não teremos medo enquanto nos amarmos. Haverá sempre um labor fulgente nas escamas vivas de um rio. Reflexos mágicos vindos do céu negro. Clara, subirá para sempre a Lua.