Vejo-me de trouxa em riste, espécie de swagman, em viagem. Secura brutal. Sem água nem aragem, penso na personagem da canção australiana e no quanto me daria jeito um bilabong. Falta-me um transporte de asa ou escama, um ascensor silencioso que vá um pouco mais além. Falta-me a vertigem do sol quente sobre a pele ou sal.
Recordo “As Partes dos Animais” de Aristóteles que encontrava o princípio das sensações na região em volta do coração, mas, neste momento, elejo e celebro o baço, estimado numa medida inversamente proporcional ao apreço que comumente é concedido ao órgão central do sistema circulatório. Se quisermos construir um campo semântico referindo essa espécie de víscera glandular (e perdoem-me as imprecisões científicas), teremos de nos esforçar muito. Rapidamente encontramos diferentes usos e conotações para o fígado, para o coração (sobretudo), mas pouco ou nada para o baço. Por exemplo, se formos sinceros, expressamo-nos com o coração nas mãos, e eu, que tantas vezes tenho o coração ao pé da boca, confesso que me apetece contestar a hegemonia metafórica desse comboio de corda (ah, e que nunca nos falte a autoridade Pessoana).
Pouso a trouxa uns momentos e verifico que não estou a ser clara. Sento-me à sombra. Explico: no emaranhado das palavras que nos perseguem, as referências aos órgãos do corpo humano permitiriam toda uma nova teoria dos humores – a cólera funesta de Aquiles prova o seu mau perder, mas também que teria, sem dúvida, maus fígados; a coragem que rompe o temor frio que gelados lhe tinha os corações dos bravos portugueses, na refrega contra o inimigo, aumenta quando, além de palavras, recebem de Nuno coração.
E o baço? O seu protagonismo inscreve-se tão somente na ausência de saúde. Vejamos, a prová-lo, o Spleen, esse mal que veio impor a melancolia, a invasão do tédio e uma certa abulia, todo um conjunto de sintomas que serve para definir um caráter marcado pelo excesso de bílis negra. Em rigor, o intervalo físico que se constitui do coração ao baço representa a distância que separa um estado de felicidade (se o coração não estiver partido) da vontade de abraçar a finitude e riscar sobre a vida, com força, o produto da última tecla do lado superior direito.
(Talvez o poeta que nos diz da vibrante insónia pretendesse, afinal, esmagar o baço e silenciar as cordas da insatisfação).
Trilho, ainda, por estas linhas guiada pela personagem que me conta uma história, perseguindo um rio. Como Bloom, como Soares, como Ulisses, sou definitivamente o swagman da canção folk australiana transportada na rouquidão inebriada de Waits (há em todos nós uma vocação secreta de arúspice da felicidade, capaz de esgravatar ou saborear vísceras em busca do caminho de casa, a caminho de Hiperbórea, a caminho de Ítaca, a caminho da Índia, a caminho de Lisboa, a caminho).
Neste instante, e não por acaso, ouço o trompete do Chet Baker, ouço sobretudo a voz que me parece recomendar, em tom exortativo, look for the silver linning, contrariando que a felicidade seja uma arte perdida (como dizia Vila-Matas, citando Cyril Connoly). Que outro propósito pode ter uma história que não a de explorar os desequilíbrios que se pretendem posteriormente reordenados? É o eterno dilema, a única inquietação que nos move: a existência de um número infindável de possibilidades que se colocam ao longo do itinerário que vamos escolhendo. Neste processo, lutamos bravamente contra as trevas, perscrutando na escuridão da noite a forma mais segura de navegar, tarefa tão necessária quanto imprecisa, em qualquer latitude. Certamente que o mais importante será a perspetiva adotada, o grau de distorção que somos capazes de suportar ou acolher, entre a realidade e aquilo que é a nossa construção pessoal nesse espaço entre dois pontos que pode ser a vida toda. Campos referia-se ao esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, mas queria ser e sentir tudo e todos numa celebração paraláxica da pretendida vitória sobre o espaço e o tempo.
Píndaro unia numa só raça homens e deuses, afirmando embora a impossibilidade de sabermos o caminho, de dia ou de noite, que o destino nos reserva; Horácio ensinou-nos a fazê-lo, colhendo o momento. Muitos, como Ronsard e Yeats, celebraram o amor em forma de ave vermelha transportada na lapela, resistente a todas as formas de erosão, mas não encontraram o roteiro eficaz para despir o peso da melancolia, suporte robusto da consciência, ferida interior a latejar sobre a corrupção inultrapassável da parte material da felicidade que o tempo provoca, louvando, nas suas composições contaminadas de tristeza solene, o amor e o belo como um arrastado lamento. Por outras palavras, em estilo elevado, recusaram a fissura da romã, indiferentes ao facto de só ela permitir o acesso à doçura do interior do fruto.
Entretanto, swagman sem bússola, vejo-me subitamente imóvel. São definitivamente horas de retempero, que um coração saudável precisa de um baço firme na sua função depurativa.
(É neste momento que, à sombra do eucalipto, acendo o lume e vejo passar o melro de Stevens metamorfoseado em ave palradora, contando o poema do Rei dos intervalos, Deus do intermédio, the king of gaps, enquanto a água ferve para o chá de carqueja).