Número 20

19 de Fevereiro de 2022

EXCURSÕES

Os desertos já não são o que eram

PAULO VENTURA ARAÚJO

O passeio ao fim da tarde converte-se, após breve crepúsculo, em passeio nocturno, mas a luminosidade ténue que persiste à beira-mar é suficiente para os vermos passar, ofegantes ou não, sempre vestidos a preceito, numa corrida interminável em que os corpos endurecem e ficam aptos para enfrentar novas corridas, a primeira delas logo pela manhã, ainda mal tenha rompido a alvorada. É Dezembro e estamos em Fuerteventura, a mais árida e mais comprida das ilhas Canárias (100 km de uma ponta à outra), e também a mais próxima da costa africana. O sol imperturbável, as temperaturas rondando os 20 graus mesmo no Inverno, os areais sem fim: tudo isso converteu a ilha em local de permanente veraneio, onde as estações do ano perdem significado e a própria passagem do tempo parece ter sido neutralizada. Cada um dos figurantes deste cenário pode ter apenas comprado um pacote de férias de uma semana com tudo incluído, mas também é possível imaginar que está aqui desde sempre e para sempre, que cristalizou numa juventude (pelo menos de espírito) mais ou menos eterna, e que começa e termina cada dia (igual a todos os dias que já passaram e a todos os que hão-de vir) correndo disciplinadamente para cá e para lá ao longo da praia.

Desconheço se há ainda quem, do púlpito de alguma igreja, denuncie o culto pagão do corpo. Sem a fé no divino que não sei se alguma vez tive, apenas posso aceitar a dualidade corpo e alma como metáfora. Mas é uma metáfora útil, pois pode conceber-se como certas almas definham por assumirem como única tarefa o cuidado obsessivo com o corpo. São como maquinistas que nem para descansar largam os comandos da máquina, e por isso a máquina é, de todas as coisas do mundo, a única que conhecem e que lhes importa. E, além do clima e das infra-estruturas turísticas, essas almas super-especializadas têm em Fuerteventura outra próspera indústria para assessorar os seus infatigáveis esforços em prol dos corpos que lhes couberam, mesmo quando já os ameaça a decrepitude. Trata-se da Aloe vera, nome que soa a garantia de honradez e uma planta que, transformada de todas as maneiras concebíveis e usada interna ou externamente, promete debelar todos os males do corpo. Não há aldeamento turístico ou centro comercial sem loja especializada em produtos Aloe vera, e nas estradas são frequentes os cartazes convidando-nos a visitar os museus Aloe vera – onde, suponho, nos explicam o ciclo da milagrosa planta desde a germinação da semente até ao creme anti-rugas. O mesmo furor Aloe vera, com idênticas lojas e idênticos museus, contaminou a vizinha ilha de Lanzarote, e é triste saber que há muito mais gente (pobres almas atrofiadas) a visitar tais museus do que a casa-museu José Saramago.

Está na altura de revelar, com inescapável pedantismo, que não fomos a Fuerteventura para fazer praia, correr à beira-mar ou besuntar o corpo com óleos benfazejos. Entre o Natal e o Ano Novo, a nossa entidade patronal fecha-nos o local de trabalho e obriga-nos a tirar férias. É fácil escolher entre ficar em casa a pasmar para as paredes ou viajar para uma ilha que desconhece o Inverno, e assim temos vindo, ano após ano, a coleccionar visitas às Canárias. Mesmo em Dezembro podemos fazer caminhadas e dedicar-nos ao nosso passatempo favorito de observar plantas, pois são muitas as que florescem nesse período. E, apesar do turismo de massas, as Canárias têm um património natural bem menos adulterado do que, por exemplo, os Açores.

Fuerteventura é um deserto – ou, como escreveu Miguel de Unamuno, um pedaço de África sariana lançado no Atlântico. O istmo com 3 km de largura por 10 km de extensão que faz a ligação à penínunsula de Jandía, no extremo sul da ilha, é formado só por areia: uma duna gigantesca que devia ser reservada a caravanas de camelos e não devassada por uma auto-estrada. As montanhas, desgastadas por milhões de anos de erosão, apresentam-se nuas, apenas com alguns arbustos ressequidos pontuando o vermelho terroso das encostas. Em alguns vales, contudo, ainda com vestígios do que outrora terão sido rios, há bosques de tamarizes e palmeiras que formam pequenos oásis lineares. E, bem na crista das montanhas, a uns 700 ou 800 metros de altitude, instalaram-se plantas endémicas como o vistoso malmequer arbustivo Asteriscus sericeus, tirando proveito da humidade acrescida.

De modo que, ao contrário do que receávamos, não regressámos de mãos a abanar. Mas o nosso melhor encontro botânico aconteceu nos desertos pedregosos de Jandía, em vales imensos acessíveis apenas por poeirentas estradas de terra batida. Foi com o cardón de Jandía, uma planta suculenta e espinhosa de menos de um metro de altura que parece um cacto mas é uma eufórbia (os verdadeiros cactos são todos originários do continente americano). Vê-lo perfeitamente adaptado às suas circunstâncias, cobrindo quase a perder de vista uma encosta que, de tão inóspita, se diria marciana, deu-nos uma lição prática de como o deserto não é a negação da vida.

Cardón de Jandía (Euphorbia handiensis) no vale dos Mosquitos, em Fuerteventura