Entre os Ossos

18 de Setembro de 2021

Os fantasmas da noite

Abílio Hernandez

Give me books, fruit, French wine and fine weather and a little music out of doors, played by somebody I do not know. É Keats quem bate à porta, inquieto como sempre. Abro e com ele entram os fantasmas desta noite: Kafka, Lorca, Camus, Duras, Hemingway, Borges (apoiado na bengala de Joyce), Faulkner, Herberto e Virginia Woolf. Kafka balbucia que Baudelaire se perdera na rua por entre a multidão, e Joyce, levemente enfastiado e arrastando Borges atrás de si, confidencia que T.S. Eliot ficara em casa a beber chá e a ler Heart of Darkness. Na sala as mulheres vão e vêm e falam de Miguel Ângelo. Preparo-me para uma noite de insónia.

No meu quarto, sentado numa cadeira, um homem que eu não conhecia murmura numa voz branca aujourd’hui maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. Perto, sem haver razão para tal proximidade, Vardaman murmura, como se lhe respondesse, my mother is a fish. Olho pela janela: ao longe (mas qual a razão desta lonjura?), numa esplanada limpa e iluminada, o empregado de mesa despacha our father who art in nada nada be thy name thy kingdom nada, enquanto o vento levanta o pó que ficara na arena e cobrira la sangre (que no quiero verla) de Ignacio. Mais longe ainda, um corpo jaz por terra e contempla o céu. Mal o vejo, mas tenho a certeza de que é o corpo de Andrei Bolkonsky, ferido de morte no campo de batalha, persistindo no direito à infelicidade e encontrando a luz interior numa irredutível estranheza perante o mundo que o rodeia.

Faz-se tarde, o sono não vem. Pego num relógio que não é meu. Está parado. É o relógio de Quentin Compson. Assombrado pelo mal, amava não o corpo da irmã, mas o conceito de honra da família, precariamente mantido pela frágil virgindade de Caddy. Acima de tudo, Quentin amava a morte. De manhã, ficava no tempo a ouvir o relógio. Quando lho ofereceu, o pai dissera Quentin, I give you the mausoleum of all hope and desire. I give it to you not that you may remember time, but that you might forget it now and then for a moment and not spend all your breath trying to conquer it. Because no battle is ever won. They are not even fought. Quentin libertou-se do tempo suicidando-se após o casamento da irmã. Anos mais tarde (mas, na realidade, antes) Clarissa Dalloway, que nunca se preocupou com relógios nem sabia da existência de Quentin, atravessa as ruas de Londres para comprar flores para a festa dessa noite, em sua casa. Ao contrário de Quentin, escolheu a ordem, diferentemente de Andrei Bolkonsky optou pela felicidade possível, mas o que ela ama é simplesmente a vida. Pouso o relógio com o mostrador voltado para baixo.

É assim a ficção. As personagens cumprem destinos. Electra pune o crime com outro crime e empurra o punhal que o irmão segura de olhos fechados e mãos trementes. Édipo, preso na armadilha dos deuses, pressente o abominável e na esperança do engano (mas haverá nele alguma esperança?) procura, obstinado, a verdade. Lear, traído por quem se julgava mais amado, vagueia em plena tempestade em busca da capacidade de aceder a uma compreensão profunda da natureza humana.

É tarde, o sono não vem. Molly Bloom, deitada na cama, fixa o papel que forra a parede do quarto e trauteia baixinho Là ci darem la mano. Depois cala-se. O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson  sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl when I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another

Recipientes de palavras carregadas de mundos é o que somos. Palavras que nos tocam e gravam sulcos na memória da nossa pele. Há livros que são feitos à medida do nosso corpo. Neste exato momento, uma mulher diz ao seu amante fugaz Je te rencontre. Je me souviens de toi. Qui est-tu?  Tu me tues. Tu me fais du bien. Comment me serais-je doutée que cette ville était faite à la taille de l’amour? Comment me serais-je douté que tu étais fait à la taille de mon corps même? Tu me tues. Tu me fais du bien.  J’ai le temps. Je t’en prie. Dévore-moi. Déforme-moi jusqu’à la laideur. Porquoi pas toi?”

Como Stephen Dedalus, leio sinais à minha volta e vejo o mundo que está lá fora desde sempre, sem mim, para toda a eternidade. Ineluctable modality of the visible. Fecho os olhos e Dedalus é afinal Jorge Luís Borges naquela fotografia em que cerra os olhos com força, como se (não) fosse cego e quisesse ver as palavras que alguém (que eu não vejo) lhe lê num livro feito de areia…

Ler começa por ser um gesto feito de silêncio, em que nunca seremos capazes de dominar a vertigem dos sentidos, em que cada palavra se abre para algo que sondamos infinitamente, mas nunca chegaremos a conhecer. Numa noite de inverno, Calvino, viajante de palavras e cidades, disse-me: Ler é ir contra algo que vai ser e que ainda ninguém sabe o que será. Lê-se para que algo aconteça. Ler, respondi, é um ato crítico e lúdico, um gesto nunca igual, que recusa a literalidade servil e a manipulação dos sentidos. Ler não é transformar um texto difícil num objeto coerente ou mais legível, é aceitá-lo na ilegibilidade da sua intensidade e confrontar a precariedade da leitura com a precária legibilidade do texto. É perceber que, ao responder às minhas interrogações com outras perguntas, cada texto não só me ensina a lê-lo, como me ensina a ler.

Antes de sair, Keats mostra-me um poema de Wordsworth que tirara ao acaso (ou não?) da estante. Sublinhara um pequeno passo (fê-lo, utilizando a rolha molhada no vinho que acabara de beber): Dreams, books, are each a world; and books, we know, Are a substantial world, both pure and good. Sabes, lemos um livro como se fosse um mundo. Mas há livros que desejam ser lidos como livros. Ler um livro como mundo é perseguir gestos, palavras e emoções das figuras que os povoam. Ler um livro como livro é ter em conta que aquele mundo só existe porque a linguagem o criou, que Antígona, Macbeth, Ema, Raskolnikov e Clarissa são feitos de palavras e não existem antes delas (embora existam para além delas). Quando o livro ilumina as suas palavras, grita a sua condição de livro. Que, no final de cada leitura, pouso e fecho, transitoriamente, à minha frente.

Chego ao fim da noite. O relógio de Quentin continua parado. Herberto, que estivera sozinho e em silêncio, diz-me, em jeito de despedida, Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, com os livros atrás a arder para toda a eternidade. Não os chamo, e eles voltam-se profundamente dentro do fogo. – Temos um talento doloroso e obscuro. Construímos um lugar de silêncio. De paixão.

Em frente da página luminosa de um livro, nenhuma insónia me fará sentir só.