Regresso à cidade com os primeiros laranjas de Outubro a vestirem o melodrama de um percurso que me viu crescer e com o qual partilhei, no início, um prenúncio de futuro, e agora, uma desilusão que se impregnou lentamente neste trajecto. Um trajecto que percorria diariamente ao ir e vir da escola, e que, mentalmente, se dividia em dois. A primeira metade, saindo muitas vezes ainda pela noite, fazia-se num passeio estreito, rasando as entradas das casas que confiavam às portas a separação entre a estrada e a sala da televisão e espreitando um café de onde saíam os sons e os cheiros dos adultos. Do outro lado da rua, o passeio iniciava com o Portugal dos Pequenitos, pontuado pelos grandes plátanos que desmascaravam as miniaturas do Estado Novo. (Optava apenas por este lado da rua quando o sol era alto e forte, e projectava as sombras frescas no muro que escondia os símbolos pátrios do lado de dentro.)
Era esta a primeira metade do trajecto, até cruzar a passadeira que assinalava o início da segunda metade do percurso. A Guarda Inglesa era, na altura, uma promessa, e eu, uma criança que a atravessava com os deveres às costas. Essa metade, que perfazia umas centenas de metros, tinha, de um lado, o Estádio Universitário e, do outro, um convento devoluto e uma encosta expectante. A avenida, que lançava duas faixas para cada lado, larga e desmesurada, dizia, no trovejar dos automóveis que voavam a velocidades impróprias para uma cidade, que o futuro passava por ali. Aqui, no lugar dos plátanos, cresciam choupos na sequência do passeio, mas eram os cedros que escondiam a vedação do estádio que comprimiam a viagem, respondendo ao ruído dos carros com uma escuridão de folhas negras.
Se a primeira metade da jornada – cuja estreiteza e porosidade dos pisos térreos abrandavam tanto o trânsito como a vida – se fazia num diálogo silencioso entre o que é a cadência curta de uma passada de criança, um modelo antigo de um velho país a espreitar por cima de um muro e a curiosidade de ver para além de, a segunda metade lançava a pressa pelo que ali se ausentava, e que viria a fixar-se, tão agressiva quanto um passado de vergonha, sob forma de uma oportunidade perdida para crescermos juntos e saudáveis – eu, e ela.
Hoje, o velho convento e o descampado à sua frente (que servira, informalmente, de estacionamento), dão lugar a um auto-intitulado equipamento de excelência para a receção de congressos, colóquios e simpósios, nacionais e internacionais, participando ativamente no sector do turismo de negócios. A entrada do novo edifício, desenhado por um arquitecto (esse traidor) que desmerece o que é comum, faz-se escondida, longe da rasteirice da rua, longe da calçada, longe de uma porta que é nossa. À rua deu o privilégio do carro e a devassidão de um local de trabalho. Não deveríamos ter que procurar pela entrada de um edifício público.
Mais à frente, onde crescia o mato na colina e a geografia reclamava apenas um pouco de paciência para com um acidente que já embelezou tantas paisagens e motivou outras tantas relações à varanda, tolerou-se um objecto autista, desenhado por um algoritmo que não hesitou em cortar a direito um pedaço de terra, um estorvo no seu cálculo, sem que ninguém reclame um pouco de dor. O que resta é um monumento da batalha desigual entre o Capitalismo e o Homem: uma colina cortada ao meio; uma caixa que se fecha na sua luz, negando ao cidadão caminhante o seu passeio; a terraplanagem do elementar desenho do espaço em prol do racionamento de umas estantes.
E assim, a avenida que foi estendida na várzea e que parecia o conduto para a modernidade a partir do dia em que a atravessei de mão dada, pela primeira vez, pensando que ela viria atrás de mim como a minha geração atrás das suas ciladas, veio, para mal da nossa vontade em nos acomodarmos no mundo, instalar-se como uma confirmação de tudo aquilo que temíamos. A primeira metade, apodrece com o passado e os seus salões de kitsh; a segunda abdicou do futuro, desprezando a sua forma – ou seja, desprezando o espaço. Construir não é mais colaborar com a terra. Construir, hoje, é o trabalho de substituir a potência do sensível pela urgência da eficácia. E perante esse pacto com um espectro de ilusões, já só consigo pressentir que os novos laranjas de Outubro cairão, também eles, impávidos e imprestáveis, enquanto as crianças vão desaparecendo das ruas.