Pico – Caldeirinhas
Pico – Floresta
Quatro anos depois, à frente do pelotão imóvel de vacas atravancando a estrada, eu e M. haveríamos de recordar aquela manhã não tão remota em que P. e C. nos levaram a conhecer os teixos. (Tirando o autor, os outros figurantes neste texto não foram ouvidos nem achados para autorizarem a sua presença e o uso dos seus nomes. A opção jornalística seria dar-lhes nomes falsos. Mais literariamente, optei por reduzir-lhes os nomes às iniciais. É pena nenhum deles se chamar K.) Nessa altura também ficámos a saber, na pessoa de C., o que é ter medo de vacas em grau tão exacerbado que podemos qualificá-lo de bovinofobia. Nos Açores, e para quem faz saídas de campo por obrigação profissional, não pode haver trauma mais paralisante.
Foi no Pico, em manhã de nevoeiro e chuva miudinha.
(O conteúdo informativo do parágrafo anterior é nulo. No Pico, acima dos 600 ou 700 metros de altitude, quase todas as manhãs são de nevoeiro e chuva miudinha, mesmo quando na costa – onde, não por acaso, se situam todas as povoações – apertam o sol e o calor.)
Saindo da Madalena, tomámos a estrada longitudinal, feita de rectas intermináveis e de duas ou três curvas talvez desnecessárias. Sempre imaginando a grande montanha invisível para lá do nevoeiro, ladeados por um arvoredo fantasmagórico e por pastagens onde se quedavam vultos indefinidos, rodámos uma vintena de quilómetros até virarmos para uma estrada secundária onde uns retalhos de asfalto serviam de moldura aos buracos. Era ali. Apeámo-nos, verificámos que trazíamos água e víveres em quantidade, envergámos os impermeáveis, apertámos os atacadores das botas, empunhámos os paus de caminhada e entrámos na primeira pastagem.
(Para impedir que as vacas se percam ou invadam terreno alheio, há cercas, sebes e muros de pedra solta separando as inúmeras parcelas em que as propriedades se encontram divididas. Os portões podem ser de metal ou uma fiada de paus ligados por arame farpado e presos por cordas. Para chegar ao mato, é comum não haver outros caminhos senão estes, e poucos levam a mal a invasão da propriedade privada, desde que, depois de os atravessarmos, fechemos os portões ou refaçamos os nós que seguram as mal-amanhadas cercas.)
Dia de sorte para C.: nenhum bovino ruminava por perto e a primeira pastagem parecia livre. Ainda antes de ultrapassarmos o segundo portão, numa linha de arvoredo acompanhando o leito de uma ribeira, P. e C. mostraram-nos o primeiro teixo. Ou melhor, indicaram-nos mais ou menos o local, desafiando-nos a identificá-lo no meio das outras árvores – desafio fácil, mesmo podendo a folhagem miúda do teixo confundir-se com a da urze (Erica azorica) e a do cedro-do-mato (Juniperus brevifolia), duas das árvores mais comuns da floresta nativa dos Açores. Era uma árvore de cinco ou seis metros de altura, em cujo tronco avermelhado, de textura rugosa, se viam as feridas causadas pelas vacas que nele habitualmente se coçavam. Mais umas dezenas de anos a massajar o costado dos animais e é de esperar que a árvore entregue a alma ao criador. O mesmo sucederá com as suas vizinhas, mas essas deixarão descendência e o teixo não poderá fazê-lo. É que o teixo é uma árvore dióica: há indivíduos femininos e masculinos; só os teixos femininos produzem sementes, e só se houver teixos masculinos nas proximidades. No Pico sobrevivem na natureza talvez uma dezena de teixos, todos solitários, e não se sabe se algum deles é feminino: nunca se lhes viu uma semente. Na tentativa de os resgatar de uma extinção que seria inevitável, reproduziram-se por estaca todos os exemplares conhecidos e plantaram-se noutro local da ilha. Se algum deles for menina, o futuro não está perdido.
O teixo (Taxus baccata) é uma árvore que existe, no estado natural, em quase toda a Europa. Raro em Portugal continental, é ainda mais raro nos Açores e na Madeira, onde seria relativamente abundante antes de as ilhas serem povoadas. O grande cronista açoriano Gaspar Frutuoso (1522-1591) escreveu no livro VI de Saudades da Terra que no Pico havia «muita e grossa madeira de cedro, sanguinho, ginja, pau branco, faias, louros e, sobre toda, a madeira de teixo»,acrecentando que a madeira servia «pera escritórios e mesas muito ricas e fasquiaria de escritórios, por ser madeira de muito preço». A exploração da madeira de teixo para marcenaria de luxo terá cessado no Pico em meados do séc. XVIII, presume-se que por falta de matéria-prima. Já sem interesse económico, o teixo era malvisto por ser venenoso para o gado, o que acabou por conduzir ao seu quase total desaparecimento, a ponto de já há várias dezenas de anos haver quem (erradamente) o julgue extinto no arquipélago.
Regresso àquela manhã nevoenta e chuviscosa de há quatro anos. Por causa de uma pastagem cheia de vacas que não quisemos atravessar, houve uma alteração de percurso e não visitámos um dos teixos previstos. Em compensação, encontrámos um teixo novo (aumentando em 25% a população conhecida da espécie) e andámos umas centenas de metros no leito seco de uma ribeira torrencial, sob um copado denso de cedros-do-mato, azevinhos, loureiros e troviscos-machos, todos copiosamente revestidos por musgos e fetos. Foi um modo de recordar que, ainda que optando pelo formato de bolso, a floresta húmida açoriana nada fica a dever às florestas tropicais em beleza e sortilégio.
Fica por explicar a bovinofobia de C. Não sei se há alguma história pessoal ou familiar que a justifique. No entanto, em conversas com habitantes da ilha, fui puxando o tema da postura agressiva das vacas, sobretudo quando têm crias. Confirmam-me que não são para brincadeiras, e até aludem a episódios trágicos. Não ficam é nos anais das famílias como ficou a gesta heróica da caça à baleia. Aquele trisavô arrastado pelo cachalote após lançar o arpão é muito mais digno de figurar na história trágico-familiar do que o infeliz que se deixou matar por uma vaca. E, explicou-me com toda a seriedade um criador de gado, uma vaca parida é ainda mais perigosa do que um touro: o touro atira-se às cegas, ela arremete de olhos bem abertos.
E aqui estamos no Pico, quatro anos e quatro visitas depois, M. ao volante, esperando que as vacas desimpeçam a estrada, e eu rememorando mentalmente tudo quanto mudou na ilha. Na verdade quase nada, porque (como é próprio das ilhas) as coisas aqui acontecem devagar. Mas é um Agosto mais concorrido do que outros agostos. Dizem-nos que as subidas à montanha estão com lotação esgotada para o mês inteiro, assim como as visitas à gruta das Torres. Só quem reserve com antecedência consegue jantar em restaurantes, e já não sobram carros para alugar. A novidade no comércio local é que na Madalena há agora um supermercado Continente, com grande prejuízo do velho Solmar. Dir-se-ia que, após a contenção forçada no ano passado, a ilha rebenta pelas costuras com o afluxo de turistas. Eu e M. sabemos que não é verdade, mas não o dizemos a ninguém. Para jantar serve-nos uma sanduíche de bolo lêvedo e alguma fruta. Se formos para o mato, cruzando pastagens sem descurar a precaução e o respeito que as vacas agora nos merecem, estamos tão longe das multidões como sempre aqui estivemos. Com sorte, havemos de encontrar mais um teixo.
Porto, 27 de Outubro de 2021