Ao volante do seu carro branco, Rúben escutava o podcast de Morticia. Gostava da voz que a inteligência artificial escolheu para ela. Até agora, nunca se arrependeu de investir em tecnologia. Gostava de sentir que o carro, além de ser o seu escritório, era a sua nave espacial. Apreciava o silêncio e o isolamento do exterior, o silêncio do motor, o suave deslizar das rodas no asfalto. Só assim podia concentrar-se nas palavras que escutava, dar-lhes toda a atenção, enquanto simultaneamente, não tinha nenhuma.
Conduzir é uma daquelas atividades que, se bem-feita, é mindless. Pensar estraga tudo. Veio-lhe à memória a história da centopeia que dança, que quando lhe perguntam como o faz, nunca mais consegue dançar.
Certas coisas é melhor fazer do que pensar. Não por ser mais prazeroso
vivê-las, mas porque é mais rápido. De outra forma, como explicaria para si mesmo estar a conduzir na China, hoje? Os vinhos já o tinham levado longe, mas esta viagem excedia todas as expetativas. Pensar que as viagens da minha terra, de Almeida Garrett, o tinham levado até Pequim, era impossível de antecipar. Permitiu-se divagar ao som da voz delicada de Morticia, agora tornada sintética. Não que conseguisse distinguir a diferença. Já a tinha visto algumas vezes, em filmes. A sua relação com a mulher fora sempre mediada por algum dispositivo tecnológico, era-lhe impossível saber como soava, a que sabia, a que cheirava. Não por muito tempo, pensou. Certamente que, um dia, a tecnologia vai poder satisfazer todos os nossos sentidos. Cheiros sintéticos, sabores sintéticos, já existem. É só encontrar forma de enganar os nossos sentidos, para colocar diretamente estas impressões no cérebro, e começar a fazer Rembrants de cheiros, Mozarts de toques, Cronenbergs da interoceção. Fazer de forma virtual o caminho da água, em que nos sentíssemos molhados, seria certamente um êxito maior do que o Avatar.
Deixou-se levar pelos seus próprios pensamentos. Nada ao seu redor o recordava que estava vivo. Não tinha frio, nem calor, nem desconforto. O corpo não lhe enviava nenhum sinal a que devesse prestar atenção. O corpo silencioso, como gostava dele. Podia assim esquecer-se de que estava lá.
Era a sua primeira vez na China. Nunca pensou, antes de se envolver com a família Almeida Garrett, que os chineses apreciassem tanto o nosso vinho. Quem diria que um poeta esquecido lhe iria valorizar o produto e permitir o aumento necessário de margem para lidar com toda a burocracia dos contentores. Os chineses a beberem um Garrett com a casta Chardonnay. Se isto não é a globalização, não tinha a menor ideia do que seria.
O que representam aquelas letras para os chineses? Estranhos carateres, como são para nós os deles, que ficam bem em edredons e tatuagens. Letras pelo seu valor gráfico, talvez seja suficiente. Letras traduzidas em números. E os números precisam menos de tradução.
Rúben escutava Morticia a falar sobre a dissolução do ser. Sobre as múltiplas mortes resultantes da dissolução. Morticia era a sua antítese. Ele via-se a si mesmo como um animista. De outra forma, como poderia explicar que as letras de Garrett resultassem num aumento de capital? O que restava de Garrett hoje? As casas onde viveu, demolidas, incendiadas, destruídas. O seu espólio a mofar nalguma caixa, no arquivo da Universidade de Coimbra. Todas as pessoas para quem escreveu as suas letras estão mortas. No entanto, as suas letras ainda vivem. Faltam apenas leitores que atribuam às letras algum significado. Os únicos leitores são os adolescentes atormentados, que têm de estudar Garrett na escola, obrigados a dissecar as suas metonímias e sinédoques. Recordava-se duma frase de Morticia que o cativou particularmente: Sic gorgiamus allos subjectatos nunc. “Banqueteamo-nos com aqueles que nos subjugam”. Pobre Maria, a pensar como será o ponto de vista da mitocôndria. O seu papel no mundo era o inverso: expandir o ser que lhe paga, dar-lhe mais poder, mais agência. Sim, era um braço do capital. Não estava particularmente interessado como pensava o seu braço. O seu braço, ao volante, acabara de aumentar as margens da família. Almeida Garrett, um liberal dândi, apaixonado por miúdas de 13 anos, a fazer cálculos de quantos pobres eram necessários para fazer um rico. Patético. Peripatético. O único que restou da criatura depois do cancro lhe comer o fígado foi o seu eu desmaterializado. Audiobooks para serem lidos pelo seu programa de inteligência artificial. Morticia estava particularmente filosófica. À procura das formas de degradação ontológica do ser, dessas passagens para a morte que não são triviais, que são mais vividas do que percebidas. Falava agora de zombies. Da importância que faz saber se interagimos com um ser vivo ou uma máquina, que é obviamente nenhuma. O problema destas duas mulheres é que não percebem nada de palavras, pensou. Não conseguem entender o mundo além da continuidade material. As palavras criam a sua própria realidade e escapam à matéria. Abracadabra. Ganham propriedades mágicas. Passam a obedecer a novas regras. A poderem estar em diferentes lugares simultaneamente. A expandir-se, ocupar e colonizar novos espaços. As palavras são um vírus, um contágio, um programa que entra numa célula e a escraviza, sem ter nenhuma perspetiva de si. As palavras, sem estarem vivas, comandam a vida como ele, ao volante, se desvia dos obstáculos. As palavras criam objetos. As palavras criam realidade. As palavras criam impressões nos cérebros dos vivos. As palavras são um doce veneno insidioso, que confundem os nossos sentidos para criar categorias, partições e repartições. As palavras são indexadas não à matéria, mas ao Dow Jones. As palavras são capital puro para as mentes que se apropriam delas. As palavras são vírus, as bactérias são leitoras. Divertiu-se a imaginar bactérias a ler Camus. Será que as bactérias têm o seu Camus? Como serão as suas bibliotecas? Edifícios com infinitos plasmídeos no formato de microfilmes. Foi então que sentiu algo irritante na garganta. Viu os espelhos do seu Tesla a fecharem-se. E, comandado por alguma vontade invisível, o Model S acelerou.