Sou novo por aqui, neste lugar que é a escrita. Ainda não sei responder quando me perguntam: porquê? Escondo as mãos entre os joelhos ou desvio os olhos num arco de lua.
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Nos últimos dias não me apeteceu escrever porque não tive o tempo necessário para sofrer. Troquei uma cidade por outra um pouco mais desconhecida. Levei a máquina fotográfica que não cheguei a usar senão para trazer de volta uma latência, uma criança por nascer. Nessa cidade fiz o que sempre faço: cheguei e perdi-me. Largado numa artéria principal, embrenhei-me numa teia onde me caçariam e me envolveriam num casulo de seda, elevando-me de sangue o bafo que entrava pelas janelas abertas. Nessa cidade em que o calor não me deixava descansar nem sofrer, repeti as caminhadas e os esforços para descobrir os vazios onde me entornar. Ali, as ruas são lugares estreitos onde há espaço para tudo. As pessoas conversam e ralham, as árvores são podadas ao cuidado das varandas, as varandas, oh, as varandas. A cidade é de uma planura atroz, em que não se vê para além do fim da rua. Não há paisagem para além dela mesma. Composta de cavidades abertas na densa massa dos edifícios, encerra em si a fundura de uma garganta quando convida à escuridão de uma taberna com os seus cheiros de carne. Há balcões que se atravessam na dualidade do que é consentido saber-se e o que é segredo; a cisão do que é vulgarmente proibido e do que, do outro lado, abre novas salas para beber. Os espaços são geralmente acanhados, fazendo do nosso corpo um gigante entre gigantes, lembrando-nos que eles — os corpos — não devem hesitar na ocupação.
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A primazia do corpo prevalece na temperatura das cores e do sexo corajoso – aquele que se tornou político. Sinto uma certa morrinha pelo privilégio de ter um sexo tão fácil, e uma espécie de inveja por não me correr nas veias um pouco de dor que me acicatasse um pouco mais a folia. Afogo-me nas ruas cheias desses arco-íris, cerveja e polícia. Nessa mistura de humores estava eu, desarmado, longe de pensar neste texto, a ombrear com o semblante de um horizonte transparente, finalmente alegre, finalmente do lado de fora da minha solidão. Alguém traz uma garrafa de água a um agente. Ele agradece, sorrindo. A noite está quente e a festa estoura no ar com as brilhantinas que caem numa espiral de outono. A cidade plana é um cântico que ecoa entre os amantes e a noite uma magia que estala no céu da boca. Celebra-se a luta. A polícia manda dispersar e já tinha eu abandonado o local quando investiram sobre o assunto. Fiquei a imaginar os bastões, as botas de couro negro, a saliva e o sangue, as purpurinas, os gemidos, os clarões azuis e os limões cortados no chão, nessa batalha pela largura das ruas e pelos espectros do amor. Há sempre uma doença nova para que fodam a volúpia de alguém.
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Estou no caminho de regresso. O autocarro parou para meia hora de almoço. Entro no restaurante vazio da área de serviço, peço uma tortilla e um sumo cor de laranja. Sento-me em frente da televisão que transmite imagens de uma outra cidade a norte. Alguém morreu. Foco-me nas legendas enquanto o resto dos passageiros começa a entrar ruidosamente na sala. Alguém morreu. Ao que tudo indica foi espancado por treze indivíduos. Então não morreu, foi assassinado. Ainda não se sabem os motivos. Pedem cautela nas averiguações, mas a última coisa que se ouviu foi te vas a morir, maricón de mierda. (É sempre tão mais cedo para tirar ilações quanto mais manifesto é o desígnio do ataque.) O rosto dele surge, entre as legendas e os comentários, o vermelho emergência dos rodapés e o roxo consumível do cenário, como um homem que resta apenas naquilo que dele encontramos na desordem da informação. Para os mais habituados aos canais de crime, no soslaio de uma desatenção, aquele jovem surge no ecrã vestido tanto de vítima como de culpado. É um rosto que aparece para ser julgado, já morto. Maricón: foi o que Samuel ouviu antes de perder os sentidos. Maricón: uma palavra demasiado empregnada de uso para permitir a declaração de um crime de ódio — a liberdade de um cu é menos óbvia que a franqueza de um assassino.
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Já de volta ao autocarro, aproximando-me da fronteira, abandonando a planura que embate nos primeiros afloramentos, regresso àquela noite de orgulho e de festa das máquinas-desejantes que somos, dos corpos que são feitos para fender as ruas, para penetrar, romper e somar nos outros. Na cidade sem paisagem, a maravilha faz-se da superfície das montras até ao fundo dos olhos. Na planície comprimida das passagens sobram as palavras de ordem e as ordens de dispersão, como se fosse possível dispensar o apetite pelo fogo. Da tensão entre os signos de vivas cores e dos vultos enegrecidos resulta o sexo que interessa: o que desperta, o que goza e o que liberta.
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Continuo sem saber por que escrevo, mas encontrei finalmente o mal que me solta a escrita. A meio caminho entre cidades, na transformação geológica do horizonte, recupero a ameaça das palavras. Não sendo elas que matam ou que salvam, são elas que definem a liberdade com que queremos cruzar as ruas e de que forma nos permitimos a ferir os outros. Não são apenas os lugares: as palavras também têm uma paisagem à volta delas. Então, talvez escreva para que não se morra de tão degradante subúrbio.