Número 32

27 de Maio de 2023

CAIXA ALTA

Patrícia Valinho: Uma mulher portuguesa, com certeza

ANDREIA M. SILVA


Foi em Alféloas, uma aldeia de Anadia, que Patrícia aprendeu a amar o chão da rua partilhado com outras crianças, o pé descalço, o bolo de café da avó, a velha máquina de costura com que coseu vestidos e memórias. Quase todas elas – as memórias – são boas.

Já adolescente, no colégio católico, percebeu o que eram as injustiças sociais, o fosso entre ricos e pobres, a intolerância disfarçada de moralidade.

Ficou-lhe o sentido de justiça com que agora defende, sem contemplações, as causas que abraça.

Patrícia Valinho, 45 anos, tem formação académica em Comunicação e Gestão e é hoje uma estratega da inovação, marketing e desenvolvimento de negócios, que trabalha desde 1998 com o talento nacional. Em 2010, com o projeto “Uma Casa Portuguesa”, construiu uma casa em que 99% dos produtos são produzidos em Portugal. O gosto pela terra sempre presente.

– Do que mais se recorda da sua infância?
Dos momentos com a minha avó paterna, uma guerreira que me criou até aos 10 anos. Das coisas que fazíamos juntas, desde o bolo de café à costura, ou os passeios nos pinhais à procura de lenha e de… gaios. E das terríveis idas à fonte sozinha porque não tínhamos água canalizada em casa. Eram terríveis porque a fonte tinha muitas salamandras e sapos e eu tinha medo. Também me recordo do prazer de andar descalça (que persiste nos dias de hoje, sempre que posso) e de brincar com a pequenada vizinha na rua até ser noite. E dos serões ao borralho a contar histórias e anedotas. Tínhamos tão pouco e estava tudo ali! Foi um privilégio ter convivido com a minha avó. Boas memórias, das que aquecem coração e alma.

– Como foi a experiência de estudar num colégio?
Foi uma experiência desafiante. Recordo, ainda com mágoa, o bullying por ser uma das miúdas pobres do colégio e da permissividade generalizada do bullying coletivo. Gozava-se com quem tinha meias remendadas, com o Fiat 127 podre do meu pai ou a minha inexistente casa de banho. Se fosse hoje não faria mossa; se bem que naquela idade é confuso (aprende-se uma coisa e experiencia-se outra na pele). Aliás, há um episódio que ainda hoje recordo. Uma freira obrigou-nos a fazer uma roda gigante de miúdas no pátio durante um recreio, para depois chamar uma amiga para o centro e humilhá-la – a Marta tinha tido a ousadia de vestir um fato de lycra no primeiro ano sem bata e isso era demasiado revelador… num colégio feminino! Marcou-me muito esta experiência. Apesar de não ter sido comigo, fui forçada a participar e até hoje não entendo como é que alguém que apregoava o amor ao próximo fez uma coisa daquelas a uma miúda com menos de 13 anos que usava a roupa escolhida pela mãe. Aquela freira demonstrou como se pode dizer uma coisa e fazer outra, e como se pode julgar outro ser humano pela forma como se veste e, pior, humilhando-o. Moldou de tal forma o meu caráter que hoje não consigo ficar calada quando vejo alguém a fazer o mesmo, ou parecido. Simplesmente atiro-me em modo cego. Talvez por me ter sentido conivente por ter participado e não ter dito nada. Carreguei essa culpa durante muito tempo. Paradoxalmente, também me senti uma privilegiada porque aquele ensino era mais exigente, completo e acompanhado. Também por isso me preocupo com a legítima luta dos professores do ensino público, que neste país só os ricos ou os sortudos (como eu, com a quota dos pobres) podem ter acesso a um ensino de qualidade.

– Que cursos frequentou?
Licenciei-me em Ciências da Comunicação na Nova, fiz uma pós-graduação em Comunicação (também na Nova), um Curso Geral de Gestão da Nova SBE e PG no INDEG em gestão cultural e criativa. Estou agora a concluir mestrado em Design de Produto.

– O seu primeiro projeto foi “Uma casa portuguesa”. Como surgiu essa ideia?
Na altura incomodava-me a pequenez de se preferir o que vinha de fora, com a crónica desvalorização do que se fazia cá. Como à época estava a reabilitar uma casa e queria usar apenas produtos portugueses, o projeto acabou por surgir naturalmente. Foram as próprias marcas portuguesas a sugerir aquela troca de serviços (divulgação em troca dos produtos) e acabaram por me incentivar a divulgar mais o projeto que era pessoal e ganhou uma dimensão nacional.

– Foi possível construir uma casa apenas com materiais feitos em Portugal?
Não se conseguiu os 100%, antes 99% – só as lâmpadas e algum equipamento da piscina não eram nacionais.

– Em que fase está o projeto?
O projeto cumpriu o seu propósito: promover as marcas portuguesas e inspirar outras pessoas a fazê-lo também. Finalmente, as estruturas oficiais criaram projetos como “Portugal Sou Eu” ou a ação “Made in Portugal, naturally” e alguns particulares outros, como a “EcoCasa Portuguesa” ou o “Portugal Faz Bem”. Considero que o meu objetivo foi cumprido. Neste momento, a marca “Uma Casa Portuguesa” está na gaveta a aguardar sangue novo para continuar, que eu tenho outras missões a cumprir.

– Entretanto, criou um novo projeto – “A Dedal”.

“A Dedal” até é anterior a “Uma Casa Portuguesa” pois nasceu em 2009 com um trabalho académico quando frequentava uma pós graduação no INDEG. Só que pelas características d’ “Uma Casa Portuguesa”, a reabilitação ganhou a dianteira e só em 2015 voltei a pegar na “Dedal”. “Dedal” é acrónimo de Desenvolvimento do Design e das Atividades Locais e, como também é o objeto que protege as mãos que sabem fazer, seria o nome certo. Até como homenagem à minha avó Mila, a minha guerreira inspiradora. O objetivo é promover o talento de jovens designers junto do mercado internacional, investindo na produção e divulgação das suas peças (desde que alinhadas com os nossos valores, missão e visão).

– Que projetos tem para o futuro?
Estou numa fase de viragem. Tenho consciência que a “Dedal” já não precisa de mim e está na hora de passar o testemunho, para que cresça. Tenho várias áreas que gostaria de explorar nos próximos tempos e estou a estudar por qual começar. Uma prende-se com o apoio a outros empreendedores nos seus projetos de forma mais formal (já o faço por paixão, sem remuneração). Outra, com a promoção de uma cidadania mais ativa: a classe política que nos representa desde a ditadura não sabe a diferença entre estar ao serviço da coisa comum e servir-se a si mesmo da coisa comum. Merecemos melhores pessoas a representar-nos: falta ética, massa crítica idónea e coerente, escasseia estratégia e planos de ação que sobrevivam aos esquemas absurdos de quatro anos para o voto. Precisamos de medidas de direita e de esquerda para colocar o país no rumo da sustentabilidade (financeira, ecológica e humana) e a miopia partidária só nos tem empobrecido. Precisamos de novos políticos e de cidadãos mais informados e exigentes. A democracia sem a participação dos cidadãos vale pouco. 50% dos eleitores não vota e isso assusta-me. É hora de liderar pelo exemplo, acabar com os tachos, quintais e burguesias. Note que a balança de valores está invertida: quem mais faz pelo coletivo (bombeiros, polícias, professores, enfermeiros, condutores de transportes coletivos, agricultores…) recebe mal e quase paga para trabalhar. Assusta viver numa sociedade com os valores assim invertidos. Por outro lado, temos uma classe política burguesa que se beneficia num registo vergonhoso, criando leis para proteger amigos e os seus próprios interesses. Dura há pelo menos a minha idade. Pecam ao não liderar pelo exemplo e movem-se como se estivessem acima dos outros (vejam-se as estórias dos menus da cantina da AR, as viaturas com motorista e os salamaleques do costume); dão um péssimo exemplo aos cidadãos. Depois ainda se surpreendem que os discursos daquele senhor de quem me recuso a pronunciar o nome ganhem tração – como não, se é um dos únicos a apontar o dedo? Os políticos não passam de seres humanos como nós e deveriam sentir-se privilegiados por nos representar. Triste ver que há um enriquecimento sem vergonha a partir do momento em que alguns abraçam a vida política. Talvez venha a aplicar estas e outras opiniões num sonho antigo: a escrita. Não necessariamente em formato tradicional. Além disso, também quero voltar a criar; tenho vindo a descobrir um gosto pelas artes plásticas e manuais.


– Que conselho dá a novos artistas e criadores portugueses?
Sejam coerentes, consistentes, persistentes e não levem as coisas muito a sério (dissociar o negócio do empreendedor é fundamental). Simplificar é um segredo maravilhoso. Acreditar e arriscar também. Deem o vosso melhor sem estar sempre em esforço – se exige um esforço muito superior à energia disponível, pode ser um indicador para deixar ir. Há sempre uma solução. Às vezes basta sair da caixa e ver as coisas de fora, sem emoção.