Tinha 22 anos quando desistiu de um curso de Direito, depois de um curso de História, para abraçar os Encontros de Fotografia de Coimbra. Em boa hora o fez. Os Encontros – que conseguiram, ao longo de dezanove edições (1980/2000), afirmar-se como uma referência no país e internacionalmente, marcando o calendário dos grandes eventos fotográficos – foram decisivos na educação do olhar de Pedro Medeiros. Um olhar que nunca deixou de estar atento aos direitos humanos e que, desde aquela década de 90, foi sabendo explorar e mostrar espaços, rostos e gestos. Dos que aniquilam aos que inspiram. Dos que conduzem ao êxtase ou à ruína.
Pedro Medeiros não acredita no poder redentor da imagem ou de qualquer outra forma de expressão artística. Mas sabe que existem imagens a pedir que olhemos para elas antes de prosseguirmos viagem. Porque se a fotografia não salva, ela deverá ter essa capacidade libertadora que vence a perseguição, a acusação, a culpa, o moralismo, o medo, o terror, o julgamento, a ganância, a desigualdade. Tem de ser sinónimo de liberdade.
Já fez trabalhos sobre prisões políticas, sobre os roteiros da prostituição masculina e feminina em Coimbra, o Estabelecimento Prisional de Coimbra, tráfico humano… Os direitos humanos são indissociáveis do seu trabalho?
Os direitos humanos são indissociáveis da minha atividade profissional e do meu posicionamento enquanto cidadão. Parte importante do meu trabalho tem vindo a ser desenvolvido na interpretação de temas que envolvem questões humanas e sociais.
Se no dia-a-dia defendo a igualdade de género, o combate à discriminação pela orientação sexual e identidade de género, os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores do sexo, a luta contra o tráfico de seres humanos, a reinserção social dos reclusos e a melhoria de condições no sistema prisional, a rejeição de toda e qualquer prisão política, o combate contra qualquer tipo de discriminação de origem étnica e social, e se a fotografia me dá ferramentas para interpretar estes temas e defender aquilo em que acredito, não vejo como não o possa e deva fazer no meu trabalho.
Entre todos os trabalhos que fez, qual foi aquele que mais o tocou. Porquê?
Costumo dizer que o projeto que mais me tocou é o próximo que vou fazer. Penso que uma obra deve ser lida como um todo, pelo que não gosto de eleger um trabalho.
Em 2018 editei o livro e apresentei a exposição “Hikari” sobre a minha experiência de vida entre 2015 e 2017 em Quioto, no Japão.
Realizei recentemente um projeto com um grupo de investigadores ligados ao Centro de Estudos Sociais da UC, editado em livro e na exposição “Ecos Coloniais – Histórias, Patrimónios e Memórias / Império e Colonialismo: Reverberações na Lisboa Actual”, que me deu imenso prazer.
Estou neste momento a preparar a edição de dois novos livros e duas novas exposições das quais darei notícias em breve.
A fotografia pode ser/deve ser espaço de liberdade?
A fotografia tem que ser sinónimo de liberdade. Liberdade de criação. Liberdade em relação ao meio, à economia, aos vários tipos de poderes, às regras e convenções dos mercados de arte.
Lembra-se do momento em que soube que queria fotografar?
Não estou certo de que tenha existido um momento em que tive essa perceção. Talvez uma junção de momentos. Em criança o meu pai levava-me muito ao cinema. Lembro-me de nos anos 70 irmos ver o “Barry Lyndon” do Stanley Kubrick, devia ter sete ou oito anos, fiquei maravilhado. Aquelas imagens, aquela luz e aquela cor não me saíam da cabeça. Por outro lado, sempre tive um grande fascínio pelo cheiro e o toque das fotografias que via nos álbuns de família ou nos antigos álbuns de viagem. Lembro-me que pensava que “as pessoas continuavam vivas” nas imagens fixadas em papel de gelatina e prata.
Integrou os Encontros de Fotografia de Coimbra, na década de 1990. Que importância teve esse momento na sua carreira?
Quando cheguei aos Encontros de Fotografia tinha desistido de um curso de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho e do Curso de Direito na Universidade de Coimbra.
No final dos anos 80 e no princípio dos anos 90, vi a exposição do Robert Frank e a do Joel-Peter Witkin na “Casa das Caldeiras” e pensei “tenho que vir trabalhar para aqui”. Passados dois anos estava a trabalhar no Centro de Estudos de Fotografia e na organização dos “Encontros de Fotografia”.
Os Encontros de Fotografia foram importantíssimos na educação do meu olhar. A aprendizagem com o Albano Silva Pereira, com a Tereza Siza, com o Manuel Miranda, com o Álvaro Rosendo ou com os meus companheiros de trabalho Paulo Abrantes e António José Martins foi decisiva na minha formação como fotógrafo.
O CEF e os Encontros eram um ambiente efervescente de conhecimento e prática fotográfica. Dividia o meu tempo entre o trabalho de produção/organização e as longas horas a revelar negativos e a imprimir nos laboratórios. Entreguei-me de corpo e alma. Chegava a passar 16 ou 18 horas por dia a trabalhar na sede da Rua Padre António Vieira no edifício da AAC.
Pelos Encontros passavam fotógrafos (as) de todas as geografias, impressores, comissários e curadores, galeristas, jornalistas, críticos de arte. O público visitante inundava a cidade.
Pelas minhas mãos e dos meus companheiros passavam fotografias originais e tiragens vintage feitas pelos próprios autores, do Robert Frank, Walker Evans, Ted Croner, Louis Faurer, William Klein, Harry Lapow, Arthur Lavine, Saul Leiter, Leon Levinstein, Weegee, Lisette Model, Felix Beato, Emílio Biel, Cunha Moraes, Lewis Hine, Manuel Alvarez Bravo, Duane Michals, Ralph Eugene Meatyard, Stephen Shore, Wim Wenders, Larry Fink, entre muitos outros.
A oportunidade de manusear, contemplar e perceber estas provas, a par com a comunicação que podíamos estabelecer com alguns dos mestres portugueses e internacionais, era o diamante em bruto que os Encontros tinham para oferecer.
Trabalhei como assistente de direção em ambas as associações até 1999, ano em que fui para Inglaterra como bolseiro do Ministério da Cultura no London College of Printing.
A partir desse momento decidi por minha conta e risco que não queria voltar a fazer produção e que era tempo de me dedicar em exclusivo ao meu trabalho fotográfico.
Foi nos Encontros de Fotografia de Coimbra que encontrou alguns dos que são ainda os seus mestres na fotografia?
Foram muitos e bons momentos. Guardo especialmente os encontros com o Robert Frank, o Jorge Molder, o Lewis Baltz, ou o trabalho realizado com o Joel-Peter Witkin e o Paulo Nozolino.
Com Paulo Furtado [The Legendary Tigerman] há uma relação antiga?
A minha relação com o Paulo remonta aos anos 80, à amizade que tenho por ele, pelos seus pais e irmãos. Temos vários gostos e experiências comuns que soubemos partilhar ao longo dos anos. Acompanhámos o percurso um do outro desde o início. Essas vivências pessoais são impossíveis de dissociar do trabalho e química criativa que depois desenvolvemos.
Nos anos 90 fotografei alguns concertos dos Tédio Boys e fiz uma memorável sessão fotográfica com eles na “Casa das Caldeiras”, a qual resultou nas fotografias para a capa do álbum “Bad Trip”.
Na viragem do milénio o Paulo desafiou-me para criarmos juntos o imaginário visual do seu novo projecto Legendary Tiger Man. Foi exatamente o que fizemos nos álbuns “Naked Blues” (2002),“Fuck Christmas, I Got The Blues” (2003), “Masquerade” (2006) e no livro/cd “In Cold Blood” (Subotnick Enterprises/Lux Records, 2004). Este último deu origem a uma exposição de fotografia que apresentámos pelo país.
Em 2004 fiz as fotografias para o álbum “Eclesiastes 1.11” dos Wray Gunn. Convenci-os a serem fotografados no “Aterro Municipal de Coimbra”. Passámos o dia no meio de uma enorme montanha de lixo a testar as nossas tripas e os nossos limites psicológicos.
Gosto do divertimento e da adrenalina quando fotografo. O Paulo é um excelente cúmplice dessa adrenalina, do desejo e da insatisfação necessárias à arte.
Entre 2003 e 2007 convidou-me para fotografar as edições do festival “Coimbra em Blues” do qual ele foi o mentor e diretor artístico. Foram cinco anos de intenso prazer junto dos mestres do Blues que resultaram num livro onde podemos também encontrar fotografias do Nuno Patinho e do Miguel Silva, editado pelo TAGV e pela Livraria Almedina.
Coimbra é um caldeirão onde vírus do rock’n’roll se dissemina rapidamente. Não há forma de o prevenir ou evitar. A amizade com o Paulo conduziu-me à amizade com o Toni Fortuna e o Victor Torpedo com quais tenho vindo também a realizar trabalho desde 2000 à atualidade.
A fotografia e a música fazem parte da minha vida, da ópera ao punk, da música tradicional à música improvisada. Nos últimos anos fiz um trabalho com os Ghost Hunt do Pedro Chau e do Pedro Oliveira que me deu imenso gozo.
Há factos que entraram de tal forma na normalidade do dia-a-dia que, por mais que atentem a alguns dos elementares direitos humanos, passam incólumes perante a indiferença mais ou menos generalizada. A fotografia pode salvar, de alguma forma?
As fotografias por si só não salvam ninguém. Não acredito no poder redentor da imagem ou de qualquer outra forma de expressão artística. Perdi grande parte do idealismo romântico que tinha em relação à arte. Tenho muitas dúvidas em relação a aspetos panfletários, revolucionários ou libertadores da arte. O que se pretende é que a fotografia produza no interlocutor pensamento. Se a ação resultante desse pensamento “salva” ou não alguém já é outra questão. Depende de quem vê, da forma como vê e o que faz com aquilo que vê.
Temos que ter em conta que a fotografia tem igualmente a capacidade de poder ser a arte da mentira e que no panorama atual, onde a cada segundo proliferam torrentes de imagens, temos que ponderar muito bem se queremos ser “salvos” os “enganados”.
O comentário de um artista sobre o momento atual de Coimbra?
Está provado, quem espera nunca alcança.
(Chico Buarque, “Bom Conselho”)