O relato era credível, tanto na forma como no conteúdo. A expressão de desespero contido, as hesitações, a surdina em que contou o que lhe sucedera, o medo que ainda o habitava. A acusação também não era de espantar. Atos daqueles praticavam-se todos os dias a coberto da paz social. Quanto ao ofensor, muito havia a dizer. O rasto de malfeitorias que deixava à sua passagem não era coisa pouca. Todos os circunstantes já o tinham visto, alguns mais de uma vez, a atravessar a rua fora da passadeira. Já para não falar do hábito que toda a gente lhe conhecia de não fazer separação dos resíduos, desprezando o futuro do planeta. Por trás da simpatia e sedução encontrava-se o ser podre, provavelmente traumatizado na infância, que realizava o mal perante a cegueira voluntária da sociedade.
Tocou-me tanto a situação que não consegui evitar recontá-la, usando a mesma surdina do relato original, a outras pessoas, incluindo algumas que conheciam o criminoso. Não era a atração do mexerico, era a sede de justiça. Uma vez que a via judicial estava fechada por falta de provas documentais e testemunhais, a única forma de a fazer era avisando do caráter vicioso do indivíduo para que se soubesse, para que houvesse cuidado na abordagem, para que qualquer movimento, mesmo subliminar, que parecesse confirmar a acusação contra ele fosse notado, propagado e adicionado ao rol dos indícios irrefutáveis.
No entanto, desconfirmou-se. Vim a saber, passados todos estes anos, e de fonte segura, que a acusação era falsa. Quando alguém finalmente deu com a língua nos dentes e o acusado soube do que corria sobre si, apresentou provas concludentes de que não estava sequer no país quando se deram os alegados factos. A pretensa vítima, há muito refugiada num local desconhecido a cofiar as memórias do sofrimento, teria até andado a espalhar acusações do mesmo teor contra diversas pessoas. A princípio, não quis acreditar. O meu corpo rejeitou com náusea a possibilidade de, ao longo de mais de uma década, ter andado a sussurrar uma mentira sussurrada, de todos aqueles elementos que se conjugavam na versão perfeita dos acontecimentos não serem senão objetos avulsos arrumados pelo viés de confirmação. Vi-me perante o grande dilema: o que fazer agora.
A primeira hipótese era a de viver com aquilo. Tinha sido manipulado a difamar uma pessoa e não iria fazer nada acerca disso. Concentrar-me-ia nos atos comprovadamente ilícitos do acusado, que embora não estivessem relacionados com a abjeta acusação de que tinha sido alvo, serviriam para mitigar a minha culpa.
Outra seria a de assumir aquela injustiça particular como um custo necessário à causa subjacente à calúnia. Por muito que, no caso concreto, a acusação fosse falsa, aqueles atos ocorriam amiúde e o seu destino era o silêncio das vítimas. Admitir que aquela fora uma calúnia sem fundamento descredibilizaria toda uma causa, pelo que melhor seria que o injustiçado ficasse como um mártir por uma causa que nem era sua, o que talvez lhe facilitasse o caminho para o céu.
A possibilidade de admitir publicamente que havia propagado uma falsidade acerca do indivíduo tinha ainda custos sociais demasiado elevados. Acrescentava ao problema da descredibilização da causa um golpe na comunidade que se tinha construído em torno da acusação e da forma como, espalhando-a aos sete ventos, poderia contribuir para o despertar das consciências. Todas aquelas pessoas a quem tínhamos contado e que se haviam juntado aos nossos esforços perderiam o chão, muitas olhariam para mim como um traidor que as fizera cair, por arrasto, no lamaçal do opróbrio.
Poderia sempre ir pedir desculpa ao acusado sem dizer a mais ninguém. Talvez ele nem soubesse do meu papel na difusão da sua imagem de facínora e a iniciativa de ir ter com ele e lhe apresentar o meu arrependimento seria surpreendente e apreciado. De certa forma, depois de me ter aproveitado dele para urdir uma teia de cumplicidades em torno de um inimigo comum, iria agora usá-lo para aliviar a minha consciência evitando a publicidade ao meu próprio ato condenável.
A última hipótese que se me afigurava era a de negar as provas que me tinham sido apresentadas. Muito bem, tinha as passagens de avião e a reserva do hotel e a palavra de quem com ele tinha estado à data dos supostos acontecimentos, mas tudo isso pode ser manipulado. Ou talvez a vítima tivesse confundido as datas. No estado de sofrimento e confusão em que evidentemente estava, era perfeitamente possível. Muito mais possível que eu ter sido levado numa conversa inventada de fio a pavio por alguém ávido de justiça, muito mais confortável que ter sido vítima do meu próprio desejo de comungar.
Optei pela última. A verdade é um contructo, uma decisão de quem tem o poder para a estabelecer. Quem era o acusado para ter mais peso nesse processo do que eu? Por que teria eu de aceitar uma factualidade emanada de um lugar histórico de poder que reclamava para si a definição do que é ou não objetivo? É claro que a acusação era verdadeira. Não havia necessidade de complicar.