Deitado no prado, com as costas da camisola verdes da erva húmida que o peso do seu corpo esmagara, deu por uma curiosidade que nunca lhe passara pela cabeça. Embora não estivesse presente naquele ambiente que, para a espécie, seria excessivamente natural, o amor-perfeito desenhava um estranho mapa na Europa latina. Pensée em francês, pensamiento em espanhol, pensament, em catalão, com os italianos a derivar ligeiramente, mas não muito, chamando-lhe viola del pensiero. Só em Portugal com o amor-perfeito e na Galiza, onde a flor se chama herba da trindade, a regra é quebrada. E bem: não seria a ausência de pensamento condição universal e necessária para que um amor fosse perfeito? A vida — extrapolava a sua experiência pessoal — cavalgava sem rédeas quando entregue à química das hormonas e aos músculos, mas, mal ascendia à torre de vigia, aí começavam os problemas. Quantos franceses, por exemplo, teriam consciência deste problema, desta curiosidade linguística que não sobrevivera às particularidades do poente peninsular. Os ingleses também foram beber o nome a França e sujeitaram-no ao abastardamento que lhes está no sangue chamando-lhe pansy, uma solução quase tão ridícula como a que encontraram para o dent-de-lion, anglicizado para dandelion.
Rebolou até ficar de bruços. Enquanto se dedicava àquelas elucubrações, não precisava de se levantar e regressar. Se tivesse rede de telemóvel, buscaria o nome das plantas noutras línguas menos operáticas: que raio lhes chamariam os suecos ou os húngaros? E os romenos, esses traidores, que teriam feito eles às flores? E os japoneses? Ali, onde a o mundo vegetal se entranhava lentamente na sua roupa, era forçado a permanecer numa ignorância relativa quanto a esta questão. Não era uma ignorância que o atormentasse, que desejasse por aí além corrigir. Pelo contrário, demorava-o, o seu cérebro engendrando possíveis ligações que a etimologia tecia em questões vãs para a humanidade. Pelo menos até que a noite lhe impusesse o desconforto da temperatura e o receio das bestas noturnas que caçam por aquelas paragens.
Mas a estrada começava lentamente a impor-se. Quer fosse a curvilínea, capaz de lhe oferecer uma preciosa demora, quer fosse a autoestrada, detentora da catarse da velocidade, ambas o levariam à família de três pétalas que ele amava imperfeitamente. A atmosfera rarefeita da casa, o lar, como ela, intoxicada pela esperança dos cegos, fazia questão de dizer, o filho achado e o filho que se perdia quando estava do outro lado do Sol. Já não sabia de onde lhe vinha aquele ato, a mecânica que o fazia voltar a despeito da vontade, para a loucura e a solidão acompanhada. Viria de fora, induzido pela comunidade ou de forças que ainda não eram conhecidas da ciência, porque dentro dele já não havia o ânimo para tanto.
Sem música, a sua única companhia era o ronco do motor a desfiar o código de velocidade. Mas o que era o silêncio, afinal? O silêncio, tal como a escuridão ou o frio, não era nada, era apenas uma ausência de algo. Embora para o espírito humano se tratasse de uma coisa pela qual se podia lutar, tal não era possível. Lutar pelo frio, pela escuridão ou pelo silêncio eram apenas maneiras de dizer, o que se fazia era lutar contra a sua existência ou, na melhor das hipóteses, a sua presença numa dada circunstância. Este vício do pensamento, esta propensão para tratar a ausência como se fosse um oposto seria com certeza um problema que a filosofia já tratara. Era para isso que pagavam aos filósofos, para pensar nestas coisas, para nos dar conta destas impossibilidades que atormentam o ser humano. Lutar contra não é o mesmo que lutar por, são atitudes diferentes, pensava, os efeitos que têm no estômago e na saúde em geral são incomparáveis. Talvez fosse aí que se encontrava a causa do seu mal, daquela inquietação que lhe tomava conta dos pensamentos — estes, flores venenosas, dedaleiras, cujo nome só conhecia em português —, da sua incapacidade para aceitar a desdita que lhe sucedera. Não era seguro consultar a internet ao volante, mas quando pudesse trataria de investigar os desenvolvimentos nesta área do saber.
Parou o carro no estacionamento do prédio. Só então se lembrou dos pilares das pontes e viadutos, construídos para suportar o embate de um automóvel a alta velocidade sem absorver a energia do impacto, otimizados para matar. No dia seguinte, seria dia de trabalho, cinco dias até ao fim de semana seguinte, quando mais uma vez teria novamente de se ausentar por razões familiares.