Número 42

10 de Agosto de 2024

OBRIGAÇÕES DO TESOURO

Pó das estrelas

HÉLIO BARATA

Caro A,

Espero que esta o encontre em boa forma, bem como aos seus. Sei que não temos qualquer contacto um com o outro há muitos anos, pelo que talvez a minha missiva o surpreenda — afinal, ditariam os costumes e a distância geográfica que entretanto se interpôs entre nós que nunca mais nos falássemos. Contudo, esses mesmos anos foram o palco de um lento e inconsciente apaziguamento do passado, tanto do que o envolve a si como aos demais que fui, por razões várias, perdendo ao longo desta longa caminhada que é a Vida. Poderá ser aquilo a que chamam o amolecimento da idade, mas a que eu prefiro chamar-lhe um afundamento do sangue em favor da espiritualidade e do que de bom e genuíno o mundo tem para nos oferecer.

A vontade de lhe escrever ter-se-á ido trabalhando no meu inconsciente, mas foi ao encontrar num velho álbum uma fotografia tirada na Associação que senti o proverbial clique. Numa das fotografias, cuja cópia junto, estamos os dois a jogar sueca contra o S., de costas, e a M., esta última ainda das minhas relações próximas nos períodos em que não está internada numa das clínicas de desintoxicação que vai percorrendo desde há muito — e cujas contas pago de bom grado. Foi aliás a M. que recorri para saber a sua atual morada, visto que, em conversa acerca de outros temas, notei que ela continuava a manter-se em contacto consigo. Foi impossível não sentir alguma comoção com a imagem da nossa juventude e do gesto descontraído que ambos ostentávamos, você com o seu sorriso sarcástico de quem, provavelmente, já previa a vitória na partida e eu, concentrado nas cartas, mas também sorridente. E, com essa comoção, surgiu o ensejo de o abordar.

A fotografia não tem data, nem sei quem a possa ter tirado, mas, a avaliar pela taça do Campeonato Europeu de Jogo da Macaca, o único troféu que conseguíramos ganhar em toda a história da Associação, que se pode ver na prateleira ao fundo da sala, suponho que tenha sido tirada pouco antes da nossa apartação. Devo dizer-lhe que os motivos concretos da cizânia se apagaram da minha memória, tal é o meu desprendimento atual em relação aos aspetos funestos da existência. Disse-me a M. que teve que ver com dinheiros, furtando-se a acrescentar pormenores, certamente algo sem importância e, estou certo, algo que, a esta distância, pareceria pueril e desproporcionado para as consequências tão drásticas que teve.

Quanto a S., busco também a sua morada, uma vez que também não mantive qualquer contacto com ele desde essa altura. Aparentemente, e ainda segundo a preciosa M., ter-lhe-ei seduzido a namorada, uma tal de H., cuja existência nem sequer recordo, pelo que me parece improvável essa versão dos acontecimentos e que, seguramente, se deve ao efeito que os estupefacientes tiveram na sua mente. Imagine que, num momento de inquietação, acusou-me de ter sido eu quem lhe apresentei às substâncias, imputação injusta que lhe perdoei com magnanimidade. Em todo o caso, todas essas putativas ocorrências passadas tratar-se-ão de coisas mesquinhas, próprias de um estado em que já não me encontro. Posso dizer que evoluí para aplicar os frutos da minha imensa fortuna no Bem, na ajuda aos mais necessitados e a trazer a tranquilidade a quem, por alguma razão, não a conseguiu ainda alcançar.

Não é minha intenção passar uma borracha sobre o que quer que tenha acontecido ou pretender voltar a ter um relacionamento com a mesma natureza daquele que a juventude nos ofereceu. As vidas separadas ter-nos-ão feito pessoas diferentes, com interesses porventura incompatíveis. A minha estada, já de tantos anos, nesta capital distante e cosmopolita na qual optei por morar rodeado dos poderosos do mundo, deu-me muito, mas nada tão importante como a capacidade de valorizar o que é mais nosso, o que nos faz o que somos verdadeiramente. Só ter tudo torna possível entender que nada se tem senão a Essência. Assim, julgo somente que seria importante — para mim é-o, como fica demonstrado — não ter as energias negativas de um desentendimento de antanho a manchar as nossas auras. Se algum desentendimento houve, ele terá sido, por certo, o resultado de um desencontro, uma incompreensão mútua decorrente das dificuldades materiais da comunicação carnal. A paz e a concórdia são, no fim das contas, o melhor que podemos devolver às estrelas.

Aguardando a sua resposta, subscrevo-me com os mais cordiais cumprimentos e, porque não, um abraço de Saudade.

B.