não quero falar sobre ela / lavo os olhos / com o sal que sobra / conservo as imagens / que se acumulam / no arco do peito
a minha guerra chegou / a minha guerra voltou / atrasei-me para o protesto / chegando de frente para os que abandonam o local / a rua está vazia / que farei com este falhanço?
que farei agora / agora / agora / nesta avenida vazia / onde ninguém estava / nem o tempo / que / em tempos / julguei que esperava por mim
lembro-me tão bem / de ser pequeno / sem saber ser pequeno / sabendo pouco de matemática / e a filosofia não existia / e a magia nunca me entusiasmou
lembro-me tão bem / de ser pequeno / e ter para mim / que o infinito ao longe / era um desafio demasiado pequeno / já muito cantado para me interessar / (brinquei tanto no pôr-do-sol)
então à noite / quando desenhava mapas com as unhas / nas madeiras da cabeceira / levava comigo uma dúvida / para o sono / uma dúvida de proximidade:
como podem as minhas unhas ferir a madeira / como posso / eu / que termino na ponta dos dedos / traçar um mapa na mobília / sabendo que entre mim e ela / existe um outro infinito / o da iminência
como explicar / depois de aprender na escola / que um zero / seguido de uma vírgula / recebe todos os números do mundo / apesar de tudo / termina / no momento da agressão à matéria
que feitiçaria é esta / que me permite entalhar a madeira / se o espaço entre mim / e ela / logicamente / está condenado ao infinito da aproximação?
a actualidade é um pouco isso / julgamos tocar-lhe / na obcessão / deixamo-nos contaminar / por ela / entornando a insónia / na cama / diariamente / para sempre
mas eu era pequeno e / não sabendo que o era / também não sabia que / já tinham dado um nome ao meu / enigma:
o Paradoxo de Zenão / datado do século quinto antes de Cristo / ele / que também nunca me encantou em criança / mais do que um Velociraptor / tudo uma pré-história / que em nada me ajudava / senão na ígnea / objectividade / de um mapa / inventado
não quero falar sobre ela / mas estamos envenenados pelo agora / que não desarma / nem à lei da bala / da feitura do mundo / que se arma / de pressa
queria falar de formas / proporções / fotografias / mas resvalo-me / fatalmente / para a gravidade da última hora / o que nos traz / o derradeiro segundo / que não trouxe o anterior: / sangue? / sabedoria? / luz?
gostava de sobreviver ao tempo / não à eternidade / mas ao tempo das revoluções / onde chego atrasado / enquanto me mentem / com as notícias em directo / fazendo-me acreditar / que vivo / neste mundo
agora / que descobri o paradoxo / que nunca irá ter o meu nome / por um atraso de milhares de anos / (outro atraso) / ligo os canais informativos / reconheço todas as caras / que nunca alcançarei / e lembro-me dela
a actualidade / é um logro / uma prosa em estilhaços / como nós / e as nossas memórias / e as nossas guerras / indecifráveis / irresolúveis / mapas / inventados / à noite.