Até ao Osso

26 de Agosto de 2023

Pole Kisses

CATARINA MARTINS

Um tubo metálico, perfeitamente liso, erguendo-se na vertical, até ao teto. Um corpo pequeno e roliço de mulher, com as marcas e o recheio de 52 anos bem vividos. Um varão de pole dance e eu. Um duelo ou um pas de deux.


O antes.


As leis do recato, do pudor, dos joelhos femininos sempre bem juntinhos, das pernas e nádegas cobertas por vestuário de corte amplo, do decote discreto, que nunca pode deixar entrever o que esconde. As leis da classe, código de conduta estrito, que ditam o que uma menina de boa linhagem, uma senhora, mãe de família, professora universitária, com os respetivos hábitos de raiz eclesiástica, pode ou não fazer para cumprir tantos lugares de altíssima dignitária. Os ditames sobre o corpo que nunca fora atlético, antes sempre se confrontara com as sentenças da balança, da fita métrica, com a imagem devolvida pelo espelho nos provadores de lojas de roupa, espelhos mentirosos, como numa qualquer malévola casa mágica de feira. A cadeia do olhar alheio e dos juízos lapidares que nunca deixaram de ressoar: demasiado gorda para o ballet, demasiado pesada para a ginástica acrobática. Uma adolescente, que só vivia nos livros, os únicos e melhores companheiros quando a timidez é indissolúvel amarra. Voos só nas histórias, delícias só nas voltas das palavras, prazer só nas explosões do imaginário.


A sedução.


Dizem que começa no olhar. Um varão de pole dance. Conjunção perfeita de circularidade e verticalidade. Altura, firmeza, a superfície lisa ao deslizar do tato, o brilho do polimento metálico. Uma forma altiva com um quê de arrogante, um chamado irresistível, uma atitude sobranceira que me diminui e atiça. O desafio da conquista arriscada e árdua. A promessa de um clímax inusitado, o êxtase profundo do diálogo pleno dos corpos, os voos de insustentável leveza, vitória humana sobre as leis da física, do concreto, o seu quê de transcendente: força, equilíbrio, elegância, harmonia, beleza. Esculturas vivas, móveis, palpitantes, o pas de deux da insuspeitável simbiose. Da pesada materialidade dos corpos à sua superação num infinito e diáfano carrocel.


A conquista.


Foi enorme o estrondo da queda. A violência das tuas rejeições a cada momento em que me estatelava no chão e me levantava com mais ganas para te agarrar de novo e tentar. Saber-te, de súbito, gélido e hostil. Ou escorregadio sob a humidade pegajosa da minha pele suada. Ou inexoravelmente alto na tua sobranceria impassível. O jogo e o risco. Tão banal, afinal. E tão singular, no fundo. Perceber-te nas subtilezas da textura, da temperatura, da dureza, da posição, da dinâmica, da velocidade, da dor e da delícia dos atritos e dos movimentos, reivindicando aprimorada precisão a cada aproximação, cada toque, cada desenho dos nossos corpos enrolados e fundidos nas difíceis minúcias desta dança. Pas de deux com o sabor trágico de todas as paixões. Devolver-te o olhar de desafio, rodear-te meneando as ancas, soltando os cabelos, provocar-te deslizando no chão como uma gata em cio até te alcançar, abrindo e fechando as pernas com que conto prender-te, convocando tudo o que em mim há de fêmea sedutora, medindo forças, doçura e raiva. E acariciar-te, agarrar-te, colar o meu corpo ao teu, deleite infinito nos primeiros círculos perfeitos desenhados à tua volta. Um crescendo de sintonia e de vertigem, a cada vez que me deixas subir por ti, roçar a minha pele, enrolar as pernas no teu corpo rijo e ereto, friccionar o metal até arder, descobrir-te e descobrir-me, na exata escolha dos membros, tecidos e músculos, no exato ponto do contacto, no exato grau da pressão, no exato ângulo do equilíbrio, no exato ritmo do movimento, na exata medida da fusão, mescla subtil de dor e prazer. Um prazer só meu em que és presa esquiva da ansiada dominação. Aquela que me devolve a medida de mim. Não desisto.


A vitória.


Não é uma. São muitas. Pequenas, aumentando cada dia, compondo um vício. O meu corpo moldado pelos caprichos do pas de deux. Descubro-me forte. No corpo roliço percebe-se o desenho dos músculos e sente-se a sua firmeza. Descubro-me elástica, enrolo-me em ti com os mais exigentes contorcionismos. Olho o mundo de pernas para o ar com o teu apoio seguro e que universos desvendo dessa perspetiva! Construo figuras de linhas habilmente conjugadas sobre o teu eixo. Derroto a gravidade. Voo em círculos estreitos ou largos, no compasso da melodia que compomos, a ternura mansa da conchinha lenta, o desvario de um tornado alucinante, em que me solto pelos ares, sem nunca deixar de te agarrar. Voo e regresso. Solto e abraço. Subo, desço, volteio, entonteço.

Olho as marcas na minha pele como o rastro dos teus beijos ardentes. Pole kisses, o paradoxal orgulho das pole dancers. Caminho, passos largos, cabelos ao vento. Mente solta e ousada, corpo livre e confiante, descoberto.

Um varão de pole dance e eu. O duelo é um pas de une.