Entre os Ossos

18 de Setembro de 2021

Por falar em osso…

JOANA PUPO

Volto a perguntar a mim mesma, porquê um teatro do corpo? E que corpo é este, que vibra e ressoa no teatro?

Pinos
Aos 18 anos entro no TEUC, com gessos nas duas pernas, após uma cirurgia aos pés. Um primeiro laboratório pôs todos os jovens aspirantes a atores a fazer pinos em uma semana. Aí estava eu (que me supunha de teatro e poesia), com os meus gessos no ar, com toda a confiança que me fora dada pelo exercício corporal e que me levava a deixar as muletas à entrada do teatro de bolso e a entrar numa relação completamente diferente com o espaço.

Primeira vivência do teatro como experiência de transformação total do sentir de si e da identidade. Neste momento, eu começo a entender que para um criador é fundamental o exercício do pino, ver o mundo desde outro ponto de vista, virar o seu quotidiano ao contrário, para se reinventar a si mesmo e ao mundo onde vive.

Ponto de vista
Se o exercício da “aisthesis” é sempre um “ressentir” ou melhor, um sentir-se sentir, porque o ser humano se vê vendo e se ouve ouvindo, para uma atriz ainda o é mais claramente, porque a sua consciência de se ver vendo e de se ouvir ouvindo está potenciada, pelo facto de estar a ser observada… Experiência perigosa e fascinante!*

“Perigosa”, porque a pode anular enquanto sujeito, deixar de realmente ver o que vê, ou sentir o que sente, porque está constrangida pelo facto de ser observada. Aí morre o sujeito da “aisthesis”, morre a criadora. “Fascinante”, porque há a possibilidade de a atriz entrar nesse espaço do jogo do sentir, não para ser observada, mas para realmente observar e sentir o mundo desde aí. Entrar numa relação direta com o mundo. Tão direta, como os nossos pés que pisam o chão. Cada passo do corpo, nesse lugar perigoso e fascinante, é um jogo de forças e intensidades, para a atriz.

Pés
Durante os últimos 12 anos, treinei exercícios inventados por atores japoneses nos anos 60 (o célebre método inventado pela companhia do encenador Tadashi Suzuki), para reconstruir toda a minha relação com o mundo desde os pés. Esta é uma gramática dos pés, que sacode a minha coluna a cada “stomp” e cujo movimento tento conter desde o centro, para melhor sentir dentro do corpo a sua ressonância. Compreender a experiência do trabalho cénico, como uma experiência de ressonância, de vibração real dos corpos, é fundamental para mim, hoje. Porquê? O que é isto?

À escuta
Procuro de novo as palavras de Jean-Luc Nancy, no seu escrito “À l´écoute” (Galilée, 2002). (Quero fazer-lhe uma homenagem, porque nos deixou há poucos dias.)

“Escutar é entrar numa espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, eu sou penetrada: pois ela se abre em mim, tal como à minha volta, e desde mim, assim como na minha direção: ela abre-me em mim assim como ao fora, e é por uma tal dupla, quádrupla e sêxtupla abertura que um “si” [mesmo] pode acontecer.” (2002, p.33)

Esta multiplicação faz-me lembrar “a sala dos espelhos” do teatro Noh. Uma sala onde o ator coloca a máscara antes de entrar em cena e que é coberta de espelhos a toda a volta, multiplicando a imagem do ator ao infinito, como se ele deixasse de ser um só corpo no aqui e agora e passasse a ser um corpo mágico, com uma presença espiralada e infinitamente repetível, que parece atravessar espaços e alterar a sensação do tempo… como o som de uma música que nos faz entrar num tempo dionisíaco.

Voltando à leitura de Nancy, eu entendo que há um corpo de ressonância do som e do movimento (o movimento provoca ondas vibracionais como o som) que se abre, que acolhe. A atriz é assim aquela que acolhe. Antes de mais acolhe o espaço, através do pé que pisa o chão (do peso que se entrega e recebe algo do chão), acolhe os materiais, as texturas, as formas. Acolhe o espaço, os objetos, o outro da contracena, o outro-público, acolhe o texto, acolhe o sentido, o som, a ficção, a narrativa. Acolhe o perigo e acolhe o fascínio desse encontro com as coisas, o outro, o mundo.

Creio que todas as atrizes e atores chegam a um ponto do processo em que treinam relaxar essa mente que num dado momento empurra o texto e a partitura, para deixar que essas palavras e gestos venham do outro, do espaço, de um objeto… como uma ressonância, numa lógica de feedback e contágio.

“Estar à escuta é estar ao mesmo tempo fora e dentro, estar aberto desde fora e desde dentro, e por isso de um ao outro e de um no outro. A escuta formaria assim a singularidade sensível que expressa no modo mais ostensivo a condição sensível ou sensitiva (estética) enquanto tal: a partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e contágio. “Aqui o tempo faz-se espaço” faz cantar Wagner no Parsifal.” (idem)

Para pensar este corpo da ressonância, basta entrarmos numa experiência de silêncio. Sem o som à nossa volta (se é que tal é possível, numa câmara de silêncio), começamos a ouvir ressoar o nosso corpo, a nossa respiração, o coração, e toda esta “caverna retumbante” (ainda Nancy, p.44). Acontece na experiência “perigosa e fascinante” do espaço cénico, essa intensidade sensorial que trazemos no cérebro primitivo do homem das cavernas, que nos permite simultaneamente acolher a ressonância do fora e do dentro. Vamos, com o corpo, da experiência da sensação concreta com o que está aí (fenomenológica) à experiência ressoante, que lança e simultaneamente se deixa atravessar e por isso mesmo é intensiva.

Creio que a experiência será similar à de sermos anfitriões numa festa muito importante, como o nosso próprio casamento ou outro momento extraordinário da vida. A abertura e a multiplicação do acolhimento a tudo o que está à nossa volta é tão intenso, que parece que a cada momento podemos sentir o nosso batimento cardíaco, o nosso sangue a correr no corpo, como se estivéssemos bêbedos de encontro e de vida. Dionisíaco ainda.

Os gregos tinham um sistema próprio de ânforas para fazer retumbar o som da cena para a plateia, o que ajudava os espetadores a entrar no transe da narrativa, através desta experiência sensitiva: da ficção, do gesto e das ondas sonoras que os rodeavam.

STOMP
Num encontro com Yoshi Oida (o célebre ator japonês de Peter Brook), ele propôs-nos dividirmos o corpo em dois: do centro para baixo ser um jardineiro que pisa sementes (e aí começámos a bater com os pés), enquanto do centro para cima tínhamos que ser tontos, bêbedos, abrir e deixar cair a parte de cima da coluna e do corpo livremente, enquanto os pés iam pisando o chão.

Esta experiência longa levava os corpos ao fim de um tempo a arfar, e finalmente éramos convidados a deixar sair o som que o centro fizesse repercutir no corpo. Uma experiência de novo longa, quase um transe, em que pouco a pouco o corpo encontra os seus pontos de tensão e relaxamento para se deixar levar, sem a tensão do tempo, e seguir infinitamente. A experiência do corpo enquanto instrumento de percussão e ressonância.

Recordo o livro de Oida (L’acteur Invisible), no qual nos fala da forma em que Zeami (o ator japonês que, no séc. XV, escreveu sobre o Teatro Noh) entendia que a arte do ator se definia com três palavras: pele, carne e osso. (Como um corpo instrumento, como se estivesse a estudar a construção de um timbale ou de um adufe.)

Segundo ele, este corpo tinha, porém, um entendimento simbólico: a pele corresponde à beleza exterior, a carne é a beleza que lhe vem do treino e o osso é a sua beleza essencial ou interior. E acrescenta que é necessário que o ator equilibre estas três partes. É o treino ou a carne que deixa emergir a beleza interna e no final, a última coisa que aparece ao público, é a pele. Como na lógica de um instrumento, há um fluxo que deve passar pelas diferentes partes do corpo.

Ressonância
Sinto que como atriz o meu trabalho é fazer vibrar a pele, o músculo, o osso. Não só de uma forma fenomenológica, como de uma forma ressonante: sentindo a minha pele como uma extensão do espaço, dos objetos e do outro; articulando e desarticulando a acão dos músculos através de exercícios que os isolam e os ligam (voltando de novo aos pinos); e fazendo ressoar os ossos através do trabalho de percussão intensiva do movimento (voltando ao stomp); até ao ponto em que, sem me mexer, consigo sentir a ressonância do meu pensamento e da minha imaginação sobre os meus ossos, como se falasse ou cantasse. E sentir como o trabalho de uma parte se repercute na outra, como se o corpo fosse uma caverna enorme onde é possível descer, por uma escada, para o conhecer/sentir.

Paradoxo
Tento apenas sentir, como se fosse surda, com toda a minha pele (cheia de carne e osso), o instrumento-espaço-cénico, através das vibrações que capto tanto desde fora como desde o meu interior. Nesse ato de acolher o momento da ressonância, preciso esquecer todo este treino (depois de o ter feito), toda a técnica, continuar a sentir o chão que piso com as pernas e libertar o pensamento como um bêbedo.


(Devo acrescentar: talvez soe bem, mas não é óbvio. É um fazer, como quem levanta paredes.)


*Roubei estas palavras a Ana Woolf, atriz e criadora argentina, com quem estou em criação.