A Avó Florinda aprendeu a nadar ainda antes de aprender a andar. Filha de um pescador da Boca da Vala Real – o local onde a vala aflui ao Rio Tejo – com casa a poucos metros do rio, o meu bisavô Manuel Maria ensinou-a a nadar assim que ela se começou a sentar, com medo que o rio que abraça a lezíria lhe levasse o bem maior. A Avó, nadadora exímia, costumava contar esta história para explicar o amor dela pela água.
Ela nasceu no Escaroupim, uma típica aldeia piscatória do Ribatejo, constituída essencialmente por avieiros, como os pais e os avós dela, que deixavam a Ria de Aveiro alguns meses por ano, normalmente durante o inverno, para pescar no Tejo, rico e farto o ano inteiro. Alguns destes pescadores acabaram por ir ficando, como os meus bisavôs que assentaram em Salvaterra de Magos. No Escaroupim daquele tempo, as casas dos pescadores eram feitas em madeira, e aguentavam-se de pé, suspensas sobre estacaria, para estarem protegidas das cheias típicas de um Tejo de mau feitio. Quando as cheias vinham e as águas, zangadas, cresciam para cima das casas, tudo o que conseguiam era passar-lhes entre as estacas. Pobres mas pintadas de cores vivas, aquelas palafitas permaneciam firmes sobre as águas revoltas, numa verticalidade quase arrogante. A Avó, resistente exímia, costumava contar esta história para explicar como é que se vive: like a bridge over troubled water.
A minha Avó teve uma vida difícil, mas não houve dificuldade capaz de lhe arquear a alegria, o sentido de humor e a forma positiva de encarar a vida. A Florinda recomeçou do zero várias vezes, sempre com a força intocada da primeira vez. “A vida tem várias fases”, dizia. Em cada nova fase ela descobria uma força nova, renovada. Foi sempre o elo aglutinador. Reunia toda a gente à volta dela. A família gravitava à volta daquele colo gigante. Sempre atarefada a pôr a mesa, a levantar a mesa, a montar a árvore de natal, a fazer bolos, a preparar as festas, a pensar nas prendas, na ementa, nos detalhes. Varina, como mandava a tradição familiar, começou a calcorrear quilómetros de estrada, com uma canastra à cabeça, desde menina – no verão e no inverno, com chuva forte ou sob o tórrido calor ribatejano, de dia e de noite, com quilos de peixe sobre a coluna ainda frágil. Valeu-lhe o aprumo, que nunca permitiu que vergasse. Há lugares que nós habitamos e há lugares que nos habitam. Eu acho que a minha Avó era um bocadinho como aquelas casas, onde ela começou: uma pincelada de cor no meio das tormentas.
Os pais da minha Avó, vindos da Ria de Aveiro, acabaram por assentar em Salvaterra, onde criaram a filha única e tardia – uma raridade para a época. A minha Avó contava que a tia dela (irmã da Mãe) fez uma promessa e pediu a Nossa Senhora para dar um filho à irmã. Uns meses depois, a minha Bisavó estava grávida. E se houve milagres a transformar água em vinho ou o mar vermelho em estrada, também é bem possível que a conceção da Florinda sobre as águas tenha tido intervenção divina. Quem a conhecia, acreditava facilmente em milagres: era uma força da natureza, na água e fora dela. Ele pescador e ela varina, mandaram-na à escola, onde andou até concluir a 4ª classe – outra raridade para a época. Chamavam-se Manuel Maria e Maria José – parece um trocadilho, mas conta quem os conheceu que não havia casal que fizesse mais sentido. Sobre os intrincados labirintos que nos levam aos lugares onde pertencemos, já disse Saramago que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Nessa história também havia uma feiticeira que, quando estava em jejum, conseguia ver o que estava dentro das pessoas e, às vezes, até o interior da terra. A minha Avó não via o interior da terra, mas eu cresci a acreditar que ela via o interior da água.
A Florinda, que fazia jus ao nome, tinha um dom natural para plantas e flores: tudo florescia nas mãos dela. Tinha o hábito de tirar pequenas estacas de plantas que via na rua para as semear em casa. Uma estaca, percebi mais tarde, é uma parte viva, normalmente um caule, extraída de uma planta e semeada à parte, para que se desenvolva. Mas se se lembram do início da história – e porque ainda ninguém inventou nada mais bonito do que as palavras – para quem tem raízes no Tejo de mau feitio, uma estaca também é o que nos permite sobreviver às intempéries. Manda a regra – ou, pelo menos, mandava a Florinda – que depois de cortada, a estaca seja colocada num recipiente com água para que crie as suas próprias raízes e seja, depois, transplantada para o seu lugar definitivo. Lembro-me do zelo da minha Avó a acompanhar, passo a passo, este processo e da sua alegria simples e profunda quando via nascer as primeiras raízes, a segunda vida de uma planta. Ou uma nova fase, porque se a vida das pessoas tem muitas fases, nas mãos da minha Avó a vida das plantas também tinha. Ela dava-lhes raízes. Raízes que nasciam dentro de água, como as suas.