Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. | T2 E3
— Boa tarde dr. Pichón. Que acha destes maravilhosos dias de outono? O nosso editor costuma dizer que para dias pequenos, programas mais longos. Mas eu sou fiel ao nosso formato. Cinquenta minutos, foi assim que começou e é assim que parece resultar.
— Boa tarde, Mariana. Tenho ouvido alguns programas radiofónicos, aqui, no vosso maravilhoso país temperado. Quanto aos critérios do nosso editor, não me pronuncio. Mas a propósito, e antes que me esqueça, acho que a forma de tratamento que usam comigo é fora do comum, mesmo em Portugal.
— Como assim, dr. Pichón?
— Gostaria que me tratasse pelo nome próprio. Além do mais não venho aqui expor posições ligadas ao meu trabalho profissional. Não sou doutor de nada. Os meus amigos- e quero crer que os nossos ouvintes são nossos amigos- tratam-me por Enrique.
— Oh, não sei se sou capaz. Francamente (Mariana para si própria, ou como se estivesse a treinar) — Enrique…— Não sei se resulta. (pausa) O nome é importante para si?
— Não apenas para mim. Quando vim para o seu país emitiram um documento em que o meu nome era Henrique, assim, com H. Foi terrível, sobretudo para as companhias de navegação aérea. Desisti de tentar esclarecer o equívoco, arriscando ficar na sala de embarque. Uma vez viajei com um lugar vago ao lado, reservado para o verdadeiro Enrique.
— O meu namorado ouve estes programas e diz que o dr. Pichón… o Enrique… me troca frequentemente o nome.
— Peço desculpa, Mariana. Habituei-me à sua colega. Por falar nisso. Ela está bem, como são as novas funções?
— Julguei que sabia. Ela deixou de ser jornalista. É a assessora de imprensa do novo presidente da Comissão Central de Planeamento.
— Planeamento de quê? Pode saber-se?
— Dos dinheiros do PRR, da bazuca, não sei dizer…
— Está a ver como o nome importa! Mas estamos a atrasar-nos. Queria hoje falar-lhe de um nome célebre, de alguém que teve direito a um Prémio Nobel há mais de cem anos.
— E esse alguém é…?
— Santiago Ramón y Cajal. Foi um notável cientista espanhol.
— Conheço. Mas estou curiosa, na mesma.
— Nasceu em Navarra e o pai era professor na Faculdade de Medicina, em Saragoça. Muito jovem, foi barbeiro, sapateiro e queria ser artista, desenhador, pintor. Até estudar Medicina com o pai.
— Estava a correr tão bem… (risos)
— Dedicou-se à Anatomia, à Histologia e ao estudo do Sistema Nervoso. Trabalhava inicialmente com um microscópio rudimentar. Aos 31 anos conseguiu um lugar em Valencia, na Faculdade de Medicina. Ganhou um prémio pelo seu envolvimento no combate a uma epidemia de cólera. E isso permitiu-lhe um upgrade dos instrumentos de trabalho e investigação.
— Deixe-me interromper. Ele esteve no terreno, na resposta à cólera? Tratava doentes? Sabendo que se trata de uma doença infecto-contagiosa?
— Não ignorava. Mas nesse tempo os médicos e enfermeiros, mesmo sem meios sofisticados de proteção, envolviam-se na assistência direta aos pacientes, incluindo os que podiam ter doenças de transmissão.
— Nas Áreas Cólera, certamente.
— Em todo o lado, Mariana. Seja como for. Ramón y Cajal com o seu novo microscópio e aplicando uma técnica histológica descrita por Golgi…
— Um italiano?
— A quem Cajal chamava o Sábio. Camillo Golgi era professor em Pavia e tinha descrito uma técnica de impregnação do tecido nervoso pela prata, a reacção negra, que revelava com detalhe e precisão a forma do neurónio e, além do mais, permitia imaginá-lo em três dimensões. A palavra neurónio, para designar a principal célula do Sistema Nervoso, tinha sido proposta por Waldeyer apenas em 1891. Mas desconhecia-se a sua forma exacta, os constituintes desta célula nervosa e sobretudo havia grande polémica sobre o seu funcionamento.
— Continue Enrique, é interessante.
— Golgi era um feroz adepto de uma teoria que imaginava o Sistema Nervoso funcionando em rede, um conjunto de fibras, como um sincício (a rede neuronal difusa). Esta rede imaginava os neurónios colados uns aos outros, como um enorme superneurónio. Cajal, ao contrário, percebeu o neurónio como uma entidade anatómica, fisiológica e metabólica. E que o influxo nervoso, aquilo a que hoje chamaríamos a transmissão da informação, fluía das dendrites para o corpo celular e depois para o axónio até às terminações axonais. Santiago Ramón y Cajal descreveu o neurónio como uma entidade independente. A transição da informação para o neurónio contíguo tinha de se fazer através de uma descontinuidade, um espaço intercelular.
— Os neurónios estavam separados uns dos outros por uma fenda? E essa fenda era invisível?
— Invisível na época, sim. O microscópio eletrónico, que daria o golpe de misericórdia na teoria do sincício, data de 1950. Mas o corante de prata de Golgi não passava de um neurónio para outro. Golgi e os adeptos da teoria sincicial não acreditavam na teoria neuronal, mas foi a coloração de Golgi quem os derrotou.
— Duas teorias concorrente, portanto. Mas estas figuras aparentemente antagónicas receberam em conjunto o Prémio Nobel!
— Em 1906. No entanto, no discurso do Nobel, nenhum deles abdicou de defender aquilo em que acreditavam. E era Ramón y Cajal quem estava certo, como toda a ciência posterior veio a confirmar.
— Bonito.
— Nomeadamente, como a Mariana referiu, a microscopia eletrónica, ultra estrutural confirmou a descrição de Cajal e a fenda sinática… Apenas com o recurso à microscopia ótica, Ramón y Cajal deixou milhares de desenhos, esboços, fotografias, correspondência, em que interpretava as imagens que observava e permitiu o desenvolvimento posterior da teoria neuronal.
— Onde podemos ver essas maravilhas?
— Foram guardadas por discípulos durante a Guerra Civil e o franquismo. Ao que sei não há ainda um Arquivo físico albergando a totalidade da sua obra. Pelo menos era o que a Unesco dizia, com preocupação, há pouco tempo. Pese o importante trabalho do Instituto Cajal, no CSIC de Espanha.
— Ia jurar que…
— O seu namorado…
— Precisamente. Falou-me de uma exposição fabulosa de desenhos que viu nos Estados Unidos. Em Minneapolis, penso.
— Tem razão, ouvi falar de uma exposição itinerante, antes da pandemia Covid, nos Estados Unidos. E há um livro que reúne parte desses desenhos. Mas se tivermos um pouco mais de tempo gostava que mostrasse ao seu editor um desenho e uma fotografia, para eventualmente incluir na edição gráfica destas suas entrevistas.
— Conte comigo, Enrique.
— Trata-se de uma célula do cerebelo, um desenho de Ramón y Cajal e de um autorretrato quando trabalhava em Valencia.
— Fiquemos a contemplar esse desenho fantástico e a fotografia, também. Afinal esse Ramón y Cajal foi um histologista, neurologista, artista gráfico, fotógrafo… Não quer continuar a falar dele no próximo programa, Enrique?
Enrique Pichón R. ficou a olhar longamente para a célula de Purkinje do cerebelo humano, cuidadosamente desenhada por Santiago Ramón y Cajal. O olhar deteve-se no horrendo carimbo do Museu Cajal de Madrid, atestando que se trata do número 328 de uma qualquer coleção. E depois, na fotografia de Valencia, a arrogância da juventude. Lembra-se de dois títulos de Cajal, Charlas de Café e O Mundo Visto aos Oitenta Anos e do que ele aí escreveu sobre a velhice. Mariana insiste com a pergunta. O dr. Pichón continua silencioso.