Fui hoje à procura de um apontamento de Marguerite Yourcenar paralelo à escrita das Memórias de Adriano, ele próprio o registo de um achado:
Encontrei de novo num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e sublinhado por mim pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: “Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cìcero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”. Uma grande parte da minha vida ia passar-se a tentar definir, depois a escrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo.
Fui à procura da anotação, embora estivesse fresca na minha memória, e me acompanhe e intrigue desde que a li pela primeira vez há dez anos (o período entre, o homem só, e aquele ‘aliás ligado a tudo’), por causa de uns versos que escrevi num destes dias, abertura de um poema ainda em construção:
é um tempo entre não ter deuses e ainda sem deus
é um tempo entre uma casa e outra
e por outra, é verão
coisa erguendo-se árida enquanto nada
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Vou mudar de casa depois do verão. E sei que no verão ainda estão por vir os dias de maior calor e distensão do tempo. Escrevi estes versos em antecipação desse tempo que me aparece como um bloco entre duas formas de vida e a que quero de algum modo dar uma espessura para além da espera. Se tivesse de escolher um gesto para o motor do poema ainda em construção, ele seria talvez o das mãos cegas à volta, tentando situar-me. Os pequenos detalhes pragmáticos sobre a casa futura têm-se configurado como um apelo obsessivo, como se nisso se corporalizasse a forma decisiva da minha acção no mundo, a medida da casa presente, a tomada plástica de um tempo que se transforma num outro, e do que implica ser e ser porosa, resolver o mundo num gesto silencioso.
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Tento explicar: habitar. A mínima escolha entre um ladrilho e outro pode desencadear em metonímia esse grande invólucro existencial condensado na irrevogabilidade do material nas mãos e dos ponteiros do relógio. Absurda e exagerada. Mas é com alegorias ou com uma real sensação de metamorfose que se faz este combate entre as coisas e as palavras. Li algures, mas isto pode ser impreciso, que Yeats dizia que quando corrigia um texto, retoque a retoque, a si mesmo se retocava. Logo eu, com tão pouca queda para a domesticidade, apareço aqui formando-me informe com ela. Talvez se trate de um caso de confusão demodée entre linguagem, pedra, e o que nas duas, pela construção, é construção de uma pergunta: como viver?
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A substância mesma de ser uma esquina é um dos poucos versos que sei de cor. É uma aprendizagem recente, lembro-me do lápis com que o sublinhei. É do Miguel Martins, em Desvão. Onde quer que estejamos juntos/ Multiplicar-se-ão assuntos de mãos e pés/ E desvãos do ser. É do Caetano Veloso, na canção Os Passistas. Quase opostos, entre a concentração vertical de um e a expansão projéctil de outro, mas solidários quando contrapesados numa estrutura. Ou na dança, nesse eixo que ela supõe. Ser o pilar, a dobra, criar uma resistência íntima aos vectores em redor.
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Há dois meses andei de volta do livrinho Poteaux D’Angle, do Henri Michaux. Pilares de Esquina. Não será tanto da ordem da carga ou da flecha do arco de viver, a alusão do título, julgo. Os pilares e as esquinas são estas ofertas-obstáculo que pontuam a cidade ou o espaço próprio, e que bem contornados, com ou sem embate, poderão re-orientar, como piões. São pequenos textos-aforismo, os pilares. Conselhos, boas perguntas. O primeiro deles, rapidamente traduzido:
É para um combate sem corpo que é preciso que te prepares, de modo a que possas fazer frente, em todo o caso, combate abstracto que, ao contrário dos outros, se aprende por devaneio.
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Cheguei a sonhar, há umas semanas, que eu era a aresta do móvel de um hall que julgo ser o da casa futura. E a minha angústia surrealista de aresta era saber como me exercer, na qualidade de aresta, por isso imóvel e muda, do melhor modo, na oposição ao mundo fora do hall. Como se, em aresta, me fosse demandada uma reptícia conversa com esse mundo: chamas, guerra, rodapés de notícias, palavras que fecham, fecham, repetem. Essas palavras na esguelha de imagens previsíveis, em competição, ao seu serviço. E a minha existência, ainda que em aresta, a congeminar a acção.
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Lembro-me de quando um arquitecto amigo foi passar uns dias ao Upper Lawn Pavilion, a pequena e mítica casa de férias de Allison e Peter Smithson, e regressou dizendo-me como lhe foi fundamental o rigoroso pilar rodado a quarenta e cinco graus: um pilar rodado para o encosto. Nunca lá fui, mas guardei esta observação quase no corpo. O músculo é convidado, o olhar abre-se em possibilidades, é inevitável. Como sublinhar. Sublinhar é estar encostado a essa rotação e procurar na paisagem a pista para a própria verticalidade (ou porta).
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Deus está nas portas, apontei três vezes, depois de uma sessão do Homem-Pykante no Cinema Trindade. Não me consigo lembrar se a frase foi dita em fita pelo Alberto Pimenta, ou se o Edgar Pêra a usou na conversa depois do filme. Porque aberta e fechada, em intermitência, é a memória que retenho. E a soleira que, enquanto as palavras e as ondas se alternavam, protagonizava a tela.
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Um dia recortei de um jornal uma pequena fotografia de quatro por seis centímetros de uma soleira. Um degrau, claramente uma soleira, só que sem porta (antes uma parede). Tenho a certeza de que era o trabalho de uma artista, mas esqueci-me de apontar o nome dela. Colei o recorte do lado de dentro da porta de minha casa (a de hoje), sobre a portinhola do quadro eléctrico.
A legenda:
Tem um lado diarístico, e ao mesmo tempo, apresenta-se como uma ficção.
O recorte:
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Um livreiro disse-me, num verão passado: é bonita essa divisão. Conversávamos sobre a distinção absoluta, e logo concomitância absoluta, entre a gravidade e o nada, a dupla face entre o material e a palavra, o meu hesitar. Fez-me uma lista: Como desenhar uma casa, O Problema da Habitação, A educação pela pedra, tantos mais, tão extensa lista de textos que se conformam por essa via para meditar sobre o exercício de existir. Ah!, e aquele poema do Herberto sobre as casas e os arquitectos, ele que também disse: o espaço é a metáfora. E quando o disse, criou-se o tempo. O livreiro acrescentou que os arquitectos lhe pareciam deuses, pequenos deuses. Eu podia ter-lhe respondido que estamos num tempo em que eles não estão, ou que estão nas portas. Não me lembrei.