Número 22

28 de Maio de 2022

PENÚLTIMA PÁGINA

RETÁBULOS (excertos)

MIGUEL SERRAS PEREIRA

Advento

Quando a espera é a ausência em que ressuma

a promessa da enchente que a revela


Catecismo

Severo o rosto erecta gravemente adorada

das mãos uma alça a saia e a outra acaricia

a nuca do donzel aos seus pés ajoelhado


Ordenação

Descinge o cavaleiro as armas junto ao leito

para adorar a amada que arma cavaleiro


Anunciação

Gestação do desejo que o dilata

quando os teus dedos ágeis e precisos

no delírio do tempo transtornado

industriam estancando-o no seu arco

o relâmpago cuja flecha tarda

à espera da enchente que a alucina


Revelação

Furtiva voz que acende na febre de infância

do teu leito de irmã desfeito um leito em branco


Ascensão

Ascende a mão nas pernas sitiadas

pelo esplendor sombrio que a acomete

na boca que os seus dedos cega e bebe

e aos dedos que confunde se entreabre


Propiciação

Suplício dos folguedos no ócio deliberado

do passeio dos lábios que bebem e semeiam

estrelas vagabundas nas coxas transtornadas


Expiação

Apertas entre as pernas a almofada

em que te esfregas mais quando reclamas

do grande espelho ao fundo frente à cama

desfeita a minha febre que amarfanha

o linho dos lençóis que a tua escalda


Purificação

Começa por tocar-se brandamente

para distrair primeiro o pensamento

do cuidado de si que o corpo prende

à sujeição que o muda em seu agente


Depois ondula os dedos sobre a concha

entreaberta no côncavo da sombra

e o seu divagar que a tarde alonga

sonha a morte de deus e solta o tempo


Monte Tabor

Porque afinal só tu és em ti própria

a própria outra em sonhos que a teu lado

o outro lado do sonho sonharia