Número 17

8 de Janeiro de 2022

O DESPLANTE

Reverberações

Frederico Martinho

Vou no comboio: destino: passagem de ano. Trago comigo o computador, uma escova de dentes, uma muda de roupa e os fantasmas de Fisher[1], a descoberta mais poderosa deste ano, se quiser fazer esse exercício de dividir a vida em ciclos de trezentos e tal dias e desmembrar uma experiência de um corpo que nem do seu exterior está a salvo. E a ironia é mesmo essa: que não há música, depressão, trajecto, cinema, náusea, desvio, paisagem, voto, arrepio, fome, sexo, entretenimento, tédio, literatura, destino, sem a noção de que travamos uma batalha política a cada inspiração, expiração, inspiração, expiração, inspiração, expiração. Claro que vou num pendular rumo à meia noite de dois mil e vinte e dois, sentado num lugar de quarenta euros, em silêncio com os demais passageiros, sem o mínimo sinal do belicismo que acabei de invocar. À primeira vista não há violência, nem sangue, nem balas perdidas. À primeira vista está tudo demasiado autónomo e inabalável. Sento-me no lugar que me foi entregue (o trinta e um) e ocupo-me da minha transpiração. Ocupo-me de mim, num lugar distante dos demais, num vagão em movimento, num silêncio trepidante, desconfiado da velocidade cruzeiro a que nos entregamos todos os dias, mas compreendendo, já há muito tempo, desde que me sussurravam os primeiros beats, que a administração do espaço entre mim e os outros nasceu não apenas com a palavra (oral ou escrita) mas com a consciência de que vibramos (também e sobretudo) silenciosamente entre pares. Do meu lado esquerdo está um homem que olha em frente, ignorando a paisagem que desliza à velocidade do comboio, sempre mais acelerada na proximidade e cada vez mais lenta na sua lonjura. Se medirmos em tempo, terei cerca de um milésimo de segundo para cada metro de carril e quase um minuto para uma montanha que surja, incoberta, no horizonte. À sua frente um rapaz curva-se perante o seu telefone inteligente e ainda não o vi a olhar pela janela. Não resisto a um julgamento moral, mas talvez ele já saiba o mundo de cor, talvez saiba mesmo que acaba de vibrar em mim. À minha frente só vejo os cabelos bem penteados de uma mulher. Não sei se vai a contemplar o mesmo sol rasteiro que eu, se lê, se constrói um espelho com o rapaz do lado, se dorme embalada pelo suave trepidar da carruagem. Atrás, apenas sei que alguém encosta os seus joelhos nas costas do meu assento, inflingindo pequenos solavancos que, mais do que me perturbar, me retira momentaneamente do transe da solitude dizendo: estamos todos na mesma viagem.

Cheguei ao meu destino: dois mil e vinte e dois. Esbarro em alguém a cada passo, numa casa em que as paredes se enconstam em nós e nos encostam aos outros. O fumo que preencheu todas as divisões faz da casa um dédalo vermelho e azul, onde nos embrenhamos na melancolia de uma névoa, que já não é fumo mas uma cortina húmida, um pranto, já não é vermelho e azul mas uma cor que se inventou nessa mistura, que não é líquida nem gasosa, e que mais se parece com uma espuma seca onde se agarra a luz. E sobre a cortina que cobre o espaço, despeja-se uma gravidade que treme no peito, que afia os talheres nas gavetas, que faz crepitar os cristais nos armários, que silencia o ruído na sua amplificação. Dessa nova cor surgem, a um palmo de distância, novos rostos, novos corpos. Aparecem e desaparecem à mesma velocidade. Movem-se com descuido, graça, sensualidade, morbidez, agressividade, loucura, delicadeza. Vibram com a força que os graves lhes transmitem, acicatando o sangue, fazendo correr os vícios debaixo da pele, entregando os olhos aos reflexos e confiando neles para fazer avançar as mãos em outras mãos, os braços em outros braços. No sofá duas almas interessam-se uma pela outra, na pista inauguram-se movimentos, no jardim acendem-se as pontas dos cigarros. Tudo com o seu próprio rumor e tudo encaixando na toada que destrói e reconstrói a casa, que desaparece como domus e reaparece como praça. As explosões são de vários níveis. O campo é minado. O belicismo é manifesto. A casa move-se como a carruagem, com pessoas que se afectam, com projecções de afecto, estilhaços de afecto — Goodman acompanha-me sempre na loucura da batalha[2]. Mas aqui a sede do outro é o mote, e o sismo é a condição de equilíbrio: tudo se reajusta na contaminação, vibrando nas cores e nos sons. O silêncio faz-se de outra forma, mais ligada ao contacto dos olhos. Há um nível de consciência que a casa incita e que o comboio restringe, mas ambos estremecem e ambos pertecem à esfera da partilha: apenas divergem na evidência que se mostra ou se esconde nas oscilações a que estamos permanentemente sujeitos. Isto tudo para concluir, na primeira manhã do ano, que os meus companheiros de viagem ora lêem, ora se desistem em ecrãs, ora dançam, ora se lançam em eufóricos abraços. Gritam, choram, beijam, dormem, bebem, desesperam, desistem, reverberam, tocam, silenciam, desconfiam, ignoram, mas sempre, enquanto o comboio entrega e a casa revira, tudo espoleta, tudo viaja, tudo ecoa o que lhe treme — tudo o que é pessoal é político. Todos inspiram, expiram, inspiram, expiram, inspiram, expiram.


[1] Fisher, Mark – Ghosts of My Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures.

[2] Goodman, Steve – Sonic Warfare: Sound, Affect, and the Ecology of Fear.