Número 41

13 de Julho de 2024

OBRIGAÇÕES DO TESOURO

Rudimentos de organologia

HÉLIO BARATA

Veste o casaco, que está frio.

Despe o casaco, que está calor.

Não cortes o queijo com essa faca.

Não bebas a cerveja nesse copo.

Por que é que estás a olhar para ali?

Por que é que te levantaste?

Onde é que vais?

Não achas?

Pediste isso? (Mas tu nem gostas disso.)

Não queres antes ouvir música?

Não queres antes ver televisão?

Não queres mudar de canal?

Por que é que te sentaste na cadeira?

Por que é que não te sentas no sofá?

Não pões sal nisso?

Não preferes com pimenta?

Já pagaste a conta do telemóvel?

A que horas é que chegas?

A que horas é que sais?

Tens falado com o coiso?

Já falaste com a coisa?

Sempre vais falar com ele?

Faz antes assim.

Não achas?

Não ponhas isso aí.

Essas calças não estão muito apertadas?

Não andes com essas meias à terça-feira.

Não vistas essa camisola ao sábado.

Não queres antes ir a Lisboa?

Não preferes ficar em casa?

E se fôssemos ao café?

Onde é que puseste o comando?

Queres que eu te faça isso?

Dá cá isso.

Deixa cá ver.

Não pegues nisso assim.

Não pode ser amanhã?

O que é que fizeste hoje?

Já tomaste os comprimidos?

Não achas?

Já viste como está a planta?

Quando é que mandas arranjar a torneira do lavatório da casa de banho de serviço cujo gotejar percorre esta casa e me ecoa nos ouvidos não sei como mais ninguém dá por ele parece que é toda a gente surda privando-me do silêncio de que necessito sem o qual não posso viver é mais importante que o próprio ar que respiro é como se o mundo me violasse num dia sem parança sem o alívio das noites sem a paz numa interpelação constante e maquinal?

Já cheiraste aqueles coentros?

Já sentiste o toque desta ganga?

Já saboreaste esta malagueta?

Não preferes em azul?

Por que é que compraste verde? (Mas tu nem gostas disso.)

Não achas?

Deixaste a porta fechada.

Deixaste a janela aberta.

Não deixaste a toalha dobrada.

Qual é o teu preferido?

Não ponhas as chaves aí.

Já pensaste no próximo fim de semana?

Onde é que estiveste hoje?

Por que é que estás a falar assim?

Tens uma pestana encravada.

Estás a ficar com as costas curvadas.

Tens uma coisa na testa.

Por que é que fizeste essa cara?

Não olhes dessa maneira.

Tens a certeza de que não queres vinho?

Não estás a beber água a mais?

Não comas isso, que faz mal.

Onde é que o conheceste?

Não achas?

Já tinhas ouvido falar disto?

Se calhar devias ir ao médico.

Se calhar devias ir à bruxa.

Por que é que nunca mais quiseste?

Não me respondes?

Não estás a ligar ao que eu digo?

Ainda te dói a cabeça?

No que é que estás a pensar?