Talvez atingido por um frémito de expectativa, o avião sacode-se ao baixar de altitude. Já se avista a ilha: um paredão de fálesias negras, aqui e ali pincelado de castanho, cortado por fitas de água, encimado por pastagens muito verdes, pontuado esparsamente no topo por casas brancas e baixas. Mais um espasmo do avião e saem-lhe das entranhas três pares de rodas. Ajustada a direcção para a pista, estabilizadas as asas tremelicantes em posição mais ou menos horizontal, ainda me percorre um último assomo de nervosismo: será que o avião consegue travar antes que a pista acabe? É a nossa muitésima visita às Flores desde 2011, neste aeroporto em formato de bolso não há memória de acidentes, mas a nossa espécie não foi feita para voar e nunca me habituo. Há aqui uma ciência dos ventos, toda feita de prevenção e cautela: se soprarem transversalmente à pista a uma velocidade superior a tantos km/h, não há descolagens nem aterragens. É frequente haver dias inteiros sem voos e as estadias na ilha prolongarem-se por vários dias suplementares ou não chegarem sequer a iniciar-se. Mais do que um boletim metereológico, interessa a quem está na ilha um boletim eólico. Chover, é certo que chove: diariamente, com maior ou menor intensidade, nem sempre com boas abertas. O que importa saber é de que lado soprará o vento.
Chegar às Flores por barco – e até 1972 essa era a única possibilidade – é outra história, e dela não estou habilitado a falar. Não conta aquela ocasião, em Junho de 2016, em que viemos do Corvo numa saltitante lancha a que chamavam semi-rígido (seria eu o único a achar tal prefixo ominoso?), resgatados de uma estadia que ameaçava ser interminável, pois no Corvo é ainda mais complicado aterrarem aviões do que nas Flores. Nesse dia, como nos quatro anteriores, as nuvens do Corvo e das Flores, em geral bem apartadas, cada uma sabendo exactamente de que ilha é, tinham decidido misturar-se em jubiloso convívio. Rasando o mar, encurtavam a visibilidade para poucas centenas de metros. Um minuto ou dois após a partida já não se via o Corvo, e só quando estávamos próximos do cais é que o vulto escuro das Flores se pôde adivinhar na névoa. O mar encrespado e cor de chumbo nada tinha de infinito, e nos 40 minutos da viagem as ilhas mal chegaram a mostrar-se. Os aviões não são de cerimónias, e nunca pude ver as Flores como uma revelação gradual, com a aproximação lenta que só um barco de longo curso proporciona. Essa experiência teria sido possível até ao Verão de 2019, com ligações semanais pela Atlânticoline entre as Flores e o Faial. Cada viagem de ida ou de volta durava nove horas, mas desde essa data não há barcos de passageiros entre as Flores e os outros grupos do arquipélago. E também não os há ligando as Flores ao resto do mundo – só ao Corvo, que é o mesmo mundo.
Contudo, outros barcos, esses de transporte de carga, continuam a chegar ao porto das Lajes das Flores, e de facto a ilha não poderia viver sem eles. Quando o furacão Lorenzo destruiu o porto em Outubro de 2019, a quebra das cadeias de abastecimento foi o problema mais sério com que a ilha se defrontou. Sob pena de colapso económico e social, alguma solução teve que se improvisar. O comércio local, seja alimentar ou qualquer outro, é inteiramente dependente da visita quinzenal do navio abastecedor. Sabe-se que ele acabou de chegar quando nas lojas há frutas e legumes frescos, variedade de iogurtes, mais do que uma escolha de sabonetes, vários tamanhos de água engarrafada. É uma corrida para encher despensas e uns dias depois regressam as lojas à penúria usual. À excepção do pão, nada parece ser aqui produzido, nem sequer laticínios (tirando o queijo fresco), apesar de as pastagens com vacas cobrirem grande parte da ilha. Presumo que todo o leite seja enviado para fora e algum dele regresse sob a forma de produto transformado.
Não depender de uma agricultura de subsistência terá, nas Flores, livrado muita gente da miséria. Mas o mundo abriu-se e, sem tecido económico que fixe a população, o despovoamento gradual parece inevitável. A cada visita que fazemos, os negócios que encontramos fechados (o bar na Fajãzinha, o restaurante italiano na Fajã Grande, a mercearia no Boqueirão) são sempre em maior número do que os esperançosos (e efémeros) negócios acabados de inaugurar. Pelo interior da ilha, são mais os campos ao abandono do que aqueles de que se tira proveito. Nunca há crianças a brincar nos reluzentes parques infantis que câmaras ou juntas de freguesia mandam construir.
Por que razão continuamos a visitar a ilha e a assistir a esta agonia? Seria trivial responder que é a natureza que nos atrai: os bosques liliputianos de cedro-do-mato crescendo nas imensas turfeiras em redor do Morro Alto, as sete lagoas jogando às escondidas na paisagem vulcânica, as inúmeras quedas de água de uma fotogenia irrepreensível no litoral da ilha (são pelo menos dez entre a Fajã Grande e a Ponta da Fajã), as plantas endémicas que só aqui ou no Corvo podemos (re)encontrar. Mas, se fosse apenas pela natureza, poderíamos talvez, perversamente, achar que só haveria ganhos com o despovoamento: a ilha regenerar-se-ia espontaneamente, regressando a um estado virginal. Na verdade, isso é impossível: se cessasse agora toda a intervenção humana, ficaria na ilha, como herança dessa ocupação, um coberto vegetal profundamente alterado. Espécies invasoras agressivas como a roca-da-velha (Hedychium gardnerianum) e as hortênsias completariam, sem controlo, o trabalho há muito iniciado, obliterando até as melhores zonas de vegetação natural. Nas Flores, ilha dolorosamente bela, a natureza está gravemente doente, e não é com o despovoamento e o abandono (não com o nosso abandono) que ela vai melhorar.
Ilha das Flores. Fajã Grande vista da Vigia da Baleia