A minha Mãe tem duas datas de aniversário: a do dia em que nasceu e a do dia seguinte, data em que foi registada. Quando eu era pequena, e alguém usava a expressão “tinha que nascer duas vezes!”, eu pensava que a minha Mãe servia como métrica do que é necessário para uma pessoa atingir a sua melhor versão. Depois, cresci e passei a ter a certeza. A minha Mãe não nasceu duas vezes, mas sempre celebrámos o nascimento dela em dobro – ela nunca conseguiu optar por uma das datas e é consensual, entre os que a conhecem, que se alguém podia ter nascido duas vezes era a Maria Regina.
Depois de ter nascido duas vezes, a minha Mãe não demorou muito tempo até começar a traçar o seu destino. Quando tinha 7 anos, ia morrendo afogada no Tejo, mas não morreu porque o meu Pai, da mesma idade, salvou-a. Os meus pais nasceram ambos no mesmo ano, ela em agosto, ele em outubro, com menos de dois meses de diferença, e a minha Mãe sempre brincou com este acaso, dizendo que o meu Pai tinha nascido para ela. E nasceu. No dia em que ele a salvou de morrer afogada, ela chegou a casa e disse à Avó Arminda que tinha conhecido o menino com quem ia casar, o que a Avó, compreensivelmente, ignorou – mas a minha Mãe não.
Pouco tempo depois, ela emigrou com os pais para os Estados Unidos da América (EUA) e por lá ficou mais de uma década, sem regressar a Portugal. No primeiro verão em que regressou, voltou a tropeçar no meu pai. O Pai Dinis contava esta história sempre da mesma maneira, para a irritar: Lembro-me perfeitamente desse dia. Ela vinha vestida de toalha de mesa, mas era tão bonita que eu nem liguei. A minha Mãe apressava-se a contestá-lo, explicando que trazia um fato que tinha sido ela a costurar, com padrão Vichy, aos quadradinhos salmão e branco: um escândalo para o Portugal soturno e cinzento do início da década de 70, explicava. Quando a minha Mãe vinha passar férias a Portugal, vinda dos EUA, com as suas camisolas de cores vivas, o cabelo curtinho à Twiggy, e o seu batom vermelho, as pessoas comentavam que ela só podia ser estrangeira, para andar assim. A Maria Regina foi uma it girl ainda antes de inventarem o conceito, numa altura em que dar nas vistas era pouco recomendável. Nada que a abalasse muito, porque ela sempre se preocupou pouco com os juízos que os outros faziam sobre ela. Seja como for, era impossível não reparar nela – e continua a ser.
A minha Mãe, para além de ter nascido duas vezes, tinha a particularidade de ser, realmente, estrangeira na sua terra. Tendo nascido na Murtosa, a minha Mãe emigrou com 8 ou 9 anos para os Estados Unidos. Passado algum tempo, ela pôde pedir a cidadania americana, mas como não tinha nascido em solo americano, não podia ter dupla nacionalidade – e para metafísica já bastava ter duas datas de nascimento. Tinha de escolher: seria portuguesa ou americana. Dada a tenra idade, os pais escolheram por ela: passou a ser cidadã americana. Mas a vida troca-nos as voltas e, já casada e Mãe de duas filhas, acabaria mesmo por regressar ao seu país, onde durante muito tempo foi estrangeira: uma americana, nascida em Portugal sem ser portuguesa. Várias burocracias depois, a Maria Regina lá recuperou a cidadania original, mas aquela abertura de quem já viu para lá das montanhas nunca a abandonou – é uma das coisas que mais a define e foi, também, uma das marcas distintivas da educação que ela nos deu: sempre alimentou tanto as asas como as raízes.
Lá em casa, quem tinha muito jeito com as palavras era o meu Pai. A minha Mãe não tinha tanto, mas tinha sempre um repertório de poemas e de músicas capazes de traduzir com exatidão o que ela não conseguia dizer. Há muitos momentos da minha vida que associo a músicas que ela me mostrou. To everything, turn, turn, turn/There is a season, turn, turn, turn/And a time to every purpose under heaven/A time to be born, a time to die/A time to plant, a time to reap/A time to kill, a time to heal/A time to laugh, a time to weep/To everything, turn, turn, turn. As músicas e os poemas vinham sempre acompanhados de um abraço apertado, cuja força calava fundo o que não era pronunciado.
A Mãe Regina – que sempre respondeu com amor, compreensão e um extraordinário jogo de cintura, aos desafios da Maternidade – criou-nos para sermos absolutamente livres, o que até pode ser um exercício fácil para uma filha, mas é um exercício difícil para uma Mãe. Mas ela sabia que só sendo muito livres, poderíamos ser muito felizes. Ela – que saiu da Murtosa a meio da Escola Primária, para aterrar numa espécie de Little Portugal, na Nova Inglaterra – cresceu presa entre dois mundos. No liceu, tinha a América das lutas feministas e do movimento dos direitos civis dos negros; no bairro tinha uma ilha onde pouco ou nada desse mundo exterior chegava e, em casa, uma típica família do Norte de Portugal na década de 70. Ela cresceu a tentar equilibrar-se entre estes dois mundos, mas isso nunca lhe fez mossa – a minha Mãe, que tem duas datas de nascimento e foi sempre uma estrangeira, nunca se deixou confundir por dualidades. Sempre soube muito bem quem era e o que queria. Nunca a vi hesitar, nem por um segundo, antes de tomar uma decisão. Principalmente nas decisivas, naquelas que mudam o rumo da vida, a minha mãe nunca vacilou – soube sempre o que quis e quis sempre, com muita força, tudo aquilo que quis. É a mulher que encontrou aos 7 anos o homem com quem ia casar.
A Regina foi a primeira feminista que conheci. Criou-nos para sermos inteiras, mas não egoístas. Fez sempre questão de nos ensinar que somos mais completos, quanto mais conseguirmos ver o Outro. Criou-nos para a humanidade, para sabermos olhar para o lado, ver para lá do nosso muro, ver os outros por dentro. Criou-nos para a tolerância. E fê-lo através do seu exemplo de generosidade: sempre acolheu, sempre recusou os julgamentos e as moralidades. Um dia, quando eu andava na Escola Primária, a minha Mãe estava comigo pela mão à porta da escola, quando foi abordada por outra Mãe que lhe fez uma pergunta, que já não consigo precisar. Algo de circunstância, conversa de Mães, sobre o funcionamento da escola ou o horário da cantina. A minha Mãe respondeu e ficou um bocado à conversa com a senhora, até ela ir embora. Passado uns minutos, aproximou-se outra mãe e disse-lhe: a senhora não deve saber, mas a mulher com quem estava a falar é prostituta. Eu era muito pequena e não entendi bem as implicações daquela conversa, mas lembro-me da revolta e do ultraje na cara da minha Mãe. Lembro-me de ela olhar para mim antes de responder. A senhora com quem eu estava a falar é uma Mãe e seja o que for que ela faz não se pega. Eu era muito pequena, mas mesmo na infância há coisas que entendemos sem entender. Naquele momento, aos meus olhos, se alguém podia ter nascido duas vezes era ela.