Número 43

14 de Setembro de 2024

IDEIAS

Semente de crápula

RITA ASSUNÇÃO SERRA

Não é fácil começar uma história com lenha, mas é assim que Carlo Collodi inicia As Aventuras de Pinóquio. A narrativa abre com um pedaço de madeira que está vivo, move-se, ri e chora como uma criança. O mestre Cerejeira assusta-se com o tronco animado e aproveita para se ver livre dele oferecendo-o a Geppetto, que pretende fazer dele um boneco e exibi-lo pelo mundo para ganhar a vida. As expetativas de ganhos não são muito altas: para ele basta um copo de vinho e uma côdea de pão. Tampouco o são para o boneco: “Vou chamar-lhe Pinóquio. Este nome há de dar-lhe sorte. Conheci uma família inteira de Pinóquios: o pai era Pinóquio, Pinóquia a mãe e Pinóquios os filhos, e todos viviam bem. O mais rico deles pedia esmola”.

Carlo Collodi é florentino e a palavra Pinocchio significa pinhão no italiano falado na Toscânia. Um pinhão é uma coisa pequena e insignificante que guarda o germe da vida, e a vida está em desacordo com o plano que o criador tem para ela, impossibilitado de impor a sua vontade sob um material que quer modelar. Assim que Pinóquio começa a ser esculpido pontapeia o mestre e foge-lhe. “Bem o mereço!”, disse Geppetto para consigo. “Devia ter pensado nisto antes! Agora é tarde!”. Além de Geppetto aceitar com naturalidade a desobediência da criatura que está a moldar (quando apanha Pinóquio quer agarrá-lo pela orelha, mas não pode porque ainda não lhe fez a orelha), aceita-o incondicionalmente como filho. Preocupa-se em vesti-lo, alimentá-lo, protegê-lo, acarinhá-lo, educá-lo. Lamentavelmente tal não é recíproco: o puto é insuportável e só se mete em trabalhos. É esquisito a comer, não escuta os seus conselhos (mesmo após ter orelhas), mente, não reconhece nenhum dos esforços que o pai faz para o ajudar nem aceita o seu amor, e arrasta-o ainda mais para a miséria.

O que é surpreendente na história é que ninguém parece ver a diferença entre o boneco de madeira e os restantes meninos: aceitam-no na escola, ele é que não quer ir e escapa-se para assistir a um espetáculo de marionetas, que também o aceitam entre si, pois estão vivas e nenhuma delas precisa de fios para se mover. Fingem ser bonecos porque são escravas de um homem horrível disposto a atirá-las sem dó nem piedade para o fogo como lenha para assar a sua perna de carneiro. Mesmo este ser abjeto mostra ter coração ao libertá-lo para ir ao encontro do pai que o ama, e ainda lhe dá dinheiro para aliviar um pouco a sua miséria, dinheiro que Pinóquio não é capaz de guardar, pois deixa-se enganar e roubar por mentirosos que se aproveitam dele por ser muito crédulo. Ao longo das suas aventuras, Pinóquio vai descobrindo a maldade e perigos do mundo, mas consegue sempre uma segunda oportunidade por estar rodeado de pessoas que acreditam que poderá tornar-se num bom menino, um menino de verdade.

Carlo Collodi escreveu Pinóquio em 1883, quando o germe do nacionalismo italiano estava bem vivo e a literatura infantil recetiva a contos morais para o fabrico de cidadãos modelo. Mas Collodi está dececionado com a sociedade que é injusta e não tem valores morais para oferecer. Pinóquio vai tornar-se num menino de verdade após mudar o seu comportamento para com o seu pai, cuida dele quando está doente, trabalha e ganha o leite de cabra que o faz melhorar, tornando-se finalmente num filho responsável capaz de amar e ser amado, conhecedor dos riscos da sociedade corrupta.

A transformação de Pinóquio num menino de verdade perde a sua dimensão metafórica no século XX e é levada à letra no filme A. I. – Inteligência Artificial de Steven Spielberg. Mas a criança robô de Spielberg leva uma vida muito diferente de Pinóquio: ao invés de ser um filho desnaturado que não obedece ao pai que o ama desde o nascimento, foi recusado pelos pais que ama por não ser um menino de verdade. A falta de carne parece ser a marca que determina toda a trajetória do robô menino, uma vez que não há nenhuma diferença de comportamento em relação às outras crianças, aliás, aproxima-se demasiado do ideal e também por isso não é amado, pois ao corresponder demasiado às expetativas torna-se num boneco sem espontaneidade ou autenticidade, ao contrário das crianças que são amadas façam o que façam por serem da carne dos pais.

A história de Pinóquio, apesar de ser infantil, oferece pontos únicos que nos permitem iluminar o que falta nos contos de ficção científica que dominam a fantasia da sociedade atual, desde Frankenstein até à saga do Alien. Tal como Victor Frankenstein, Geppetto é um criador, mas a reação das duas personagens perante as criaturas vivas que geraram é oposta: enquanto Geppetto se lamenta dizendo “Devia ter pensado nisto antes! Agora é tarde!” e a seguir perfilha-a, Victor que compôs a criatura de carne morta foge da parentalidade quando esta se anima, e abandona-a à sua sorte. Eis o paradoxo de “dar vida a”: uma vez conseguido o feito, as ambições do criador são destruídas por não determinar completamente a criatura. A vida sofre ao ser constantemente manipulada para corresponder a um ideal inalcançável, o da criação que corresponde perfeitamente aos desígnios do criador sem defeitos nem desvios. Quem sabe por esta razão o ser humano que procura animar o que entende como desertos, tábulas rasas e espaços vazios acaba inevitavelmente por colonizar e escravizar a vida que encontra no caminho ou que tem o azar de ser gerada no processo. A vida tem ser tratada como uma semente de crápula:1 por mais que o educador pretenda corrigir os seus defeitos, “a planta está na semente e a semente já é planta”.2


Os cogumelos de Deligny

Enquanto pesquisava sobre a vida extraordinária de Fernand Deligny e as suas experiências pedagógicas com crianças e jovens delinquentes na França, durante a Segunda Guerra Mundial e o pós-guerra, sem impor castigos, deparei-me com a micro história que conta sobre uma das suas monitoras:

«uma das meninas do Centro é uma monitora de vinte e três anos, nascida e criada num meio abastado, que chegou aqui pelo gosto da exploração humana.

Ela vive o mais próximo possível dos meninos, fala com eles e escuta-os. Disse-me: “Na prisão, eram mais felizes. Na cela, em grupos de nove ou dez, eles ajudavam-se. Nunca se teriam roubado uns aos outros. Aqui, ao ar livre, espalhados, à vontade, roubam-se, denunciam-se. Ao sair da prisão, resgataram na administração penitenciária o seu egoísmo.

Ela está realmente dececionada. A sua observação é justa.

Ignora que os afogados, ao reviver, começam por vomitar. Ignora que a vida de uma coletividade reduzida produz leis, regras, costumes de uso exclusivo da pequena coletividade, que essa tão aparente e tão escrupulosa honestidade do pequeno grupo de prisioneiros é um reflexo coletivo que muitas vezes se prolonga até a escravidão total dos mais fracos.

Está obcecada pelas abstrações da “honestidade”, da “justiça” e da “disciplina”. Encanta-se com as suas mínimas manifestações espontâneas, incapaz de reconhecer, entre os cogumelos “morais” que crescem ao sabor das circunstâncias, os comestíveis e os venenosos.

A verdade é que, por herança de família, ela adora cogumelos. Corre o risco constantemente de intoxicação e assim vai acabar abandonando a profissão.» Retirado de Fernand Deligny (2018): Os vagabundos eficazes – operários, artistas, revolucionários: educadores. n-1 edições, páginas 35-36.

Revi-me. Claramente fui eu noutra vida. Distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis não me é assim tão difícil, porque se comportam como espécies. Não espero morrer intoxicada de um Cantharellus mais do que ao comer uma maçã, mas tenho de ter atenção onde crescem e como os cultivam. Há venenos que os contaminam e não saem com lavagem, que não os matam mas ficam incorporados na sua carne, matando os que se alimentam deles. Será que o vómito de Deligny é a necessidade dos cogumelos cuspirem o veneno? Já assisti a esse veneno ser cuspido diversas vezes, é assustador e magoa muito, ainda mais se vem fermentado e destilado ao longo de anos. Mas concedo-lhe a razão, também eu já vi o veneno ser dissipado para aparecer uma coisa nova. Assisti ao reviver dos afogados: é o momento em são abandonados, porque se afastam dos condenados com quem partilham a cela. Seja como for, um afogado não é um alimento. Ao invés de nutrir precisa de ser nutrido e será sempre uma desilusão para quem esperava mais do que ele pode oferecer.

Costumo alimentar-me de cogumelos que conheço bem, que habitam lugares não contaminados. Talvez porque seja vulnerável ao veneno: não faço questão de testar a resistência do meu fígado, dos meus rins e muito menos do sistema nervoso que inclui o meu cérebro. Os meus cogumelos são seguros não porque eu os cultive (coisa horrorosa), mas porque o ambiente onde crescem é mais ou menos livre. Escolho os que não se disfarçam de outra coisa: aqueles que consigo identificar bem por conhecer a espécie a que pertencem. É mais um ato de reconhecimento do que um ato de polícia: encontro-os no chão da floresta no húmus onde ainda guardam cheiros fugazes, junto aos amigos vegetais com quem se aliam, ou dos cadáveres que reciclam. Na floresta tudo é recurso e nada é sujo, mas basta um humano habitá-la para ser um lugar encardido. Os fungos são os assimiladores do mundo, fábricas compositoras de remédios e venenos usados por quem sabe ler as etiquetas. Não é um lugar para os iletrados. De cogumelos morais, não percebo nada. Quem sabe ainda não cheguei à espécie para lá do vómito. Sinto-me envergonhada de sabê-lo hoje. Talvez um dia consiga perdoar-me.


1 Semente de crápula é o título de um livro de Fernand Deligny, pedagogo libertário francês: Semente de Crápula. Conselhos aos educadores que gostariam de cultivá-la, publicado originalmente em 1945, onde relata as experiências que teve com crianças e jovens delinquentes e inadaptadas que designava de “crianças difíceis”.

2 Fernand Deligny, op. cit.