UMA RELAÇÃO CARNAL
“Tu és a minha mãe”, responde-me, de forma determinada, enquanto eu lhe apresentava outras opções, como por exemplo amiga, professora ou aluna. Fiquei muito feliz com o meu título. Porque, apesar de ser a sua mãe biológica, sou essencialmente a Rita Serra, nome pelo qual me designa com frequência. Gradualmente, ela fez o seu entendimento da relação que a palavra “mãe” configura. Nascer de mim não foi suficiente para a vincular ao papel de filha, tal como não foi suficiente para me vincular ao papel de mãe. Durante meses, anos, fomos construindo, todos os dias, a nossa relação carnal. Houve mamas e mimos, sucção e pele. Houve e há cheiros e roços. Há pêlos e miados. Há risos. É sobre o não verbal que vão surgindo os nomes, além das onomatopeias e das palavras divertidas que valem pelos seus atributos sónicos. E é sobre este caldeirão semiótico que emerjo eu, representada de rainha, mãe da filha princesa. “A Maria Júlia é da Disney”, diz-me, “e eu sou a personagem principal do meu filme”. É um filme que já vai no Maria Júlia 3, que é ao vivo. No desenho somos nós, com roupas de aniversário, eu com a minha coroa de prenda, que me serve. Fiquei muito feliz. Cantamos os parabéns e comemos o bolo. Assim se tece a fantasia dos dias, onde o que é a sério e o que é a fingir varia. O bolo arco-íris, as roupas e a coroa são imaginados. São os nossos avatares, a minha entrada num filme onde tenho um papel.
Rainha mãe e Maria Júlia.
UMA ECOLOGIA DE SERES
“Se eu morrer transformo-me numa pomba”, diz-me no carro, enquanto simulamos cenários sobre um acidente por olhar o relógio a ver quanto chegamos atrasadas à escola. Fantasiamos os casos mais trágicos primeiro, até chegarmos aos menos graves, em que o carro vai ao mecânico para reparar. Antes da pomba, que não sei de onde veio, a morte era dormir para sempre. Tal poderia resultar de doença ou velhice, como aconteceu com os gatos da sua primeira infância, ou de um ato de malvadez de terceiros. O filme “Branca de Neve” mostra-nos isso. As princesas da Disney são uma entrada na ecologia de seres. Uma princesa que se preze tem uma vilã à sua altura. Mas são resgatadas pelo amor, às vezes por príncipes. Pergunto-lhe se tem algum vilão ou vilã. Até agora, só tem vilões imaginários. E também tem um príncipe, o Pedro de olhos verdes. Nos desenhos, os olhos fechados não são apenas para a morte e o sono. São também para as personagens apaixonadas.
Branca de Neve com o seu Príncipe.
AZUL MISTÉRIO
E quem é esta personagem? Pergunto eu, sobre a criatura azulada que figura entre as outras do filme “Encanto”. Nomeia-as todas: a Abuela, a Pepa, a Isabela, A Mirabel, o Camilo, a Luísa, a Dolores, o Félix e o António. O Bruno está ausente, porque, tal como no filme, “não falamos do Bruno”, a ovelha-negra da família. Sobre a criatura azul não obtive resposta. Um dia ou mais tarde vai-me dizer. Tento adivinhar, sem sucesso. A verdade é que não me conta tudo. Há criaturas demasiado emocionais, privadas. Há um mundo fora de mim, que não é partilhado. É o azul mistério.
Personagens do filme “Encanto”. Da esquerda para a direita: Azul mistério, António, Felix, Dolores, Luísa, Camilo, Mirabel, Isabela, Pepa, Abuela.
DOIS PODEM JOGAR ESSE JOGO
O espaço das representações tem dois sentidos. A Maria Júlia é da Disney, e compõe o seu próprio argumento ao vivo. Mas também pode mudar o argumento de outros filmes e interagir com as personagens. Aqui a Maria Júlia com a Jasmine, e com a mãe dela.
O dia de anos da Jasmine. Da esquerda para a direita: mãe da Jasmine, Jasmine, Maria Júlia.
OS NÃO-HUMANOS
E quem são estes? Diz-me que são o galo Hey-hey, o caranguejo Tamatoa, o porquinho Pua, a onda do mar e a Tefiti, a ilha mãe, do filme “Vaiana”. Procuro saber mais. Cada um tem uma história. Pergunto, “porquê que a Vaiana e a avó não estão aqui?” Estão desenhadas noutros lugares. Lentamente compreendo que se trata da categoria dos não-humanos. Mas a categoria não tem nome. É composta pelas histórias particulares de cada um dos elementos.
Personagens do filme “Vaiana”. Da esquerda para a direita: galo Hey-hey, caranguejo Tamatoa, porquinho Pua, onda do mar, Tefiti, a ilha mãe.
CRESCER
Poucas pessoas se apercebem, mas a nossa espécie sofre metamorfose. Trata-se do ato de crescer, de transformar uma criança num adulto. O que acontece à criança durante o seu crescimento é na verdade, um mistério. No Maria Júlia 1, ela era mais pequena. Pode ver o seu filme inúmeras vezes nos vídeos que gravou da sua própria infância. Ao revê-los olha para si com carinho, e vê o quanto mudou, o que aprendeu, o que cresceu. Os vídeos são uma gigantesca biblioteca de memórias. Decidimos não apagar os tristes, porque também podemos aprender com eles as diversas emoções que experimentamos, e dar-lhes nomes. Rever os vídeos traz sempre algumas diferenças. Os vídeos preferidos são transformados em teatros de marionetas. O des-envolvimento é essencial ao crescimento, introduzindo diferenças na repetição, e não é contínuo. Há um momento indefinido onde uma fase se completa e uma nova se inicia, e com ela surge um novo futuro, uma nova ela, que além de ser maior em tamanho, é qualitativamente diferente, uma nova temporada com mais episódios onde a vida continua, a ver o que acontece depois.
Rainha Iduna do filme “Frozen” com as duas filhas, as princesas Ana e Elsa, pequeninas.