“Suppose we think of sexuality as futile, losing oneself as you say, but losing oneself in the other. In other words, destroying one’s own individuality. Wouldn’t the ego in self defense automatically resist the impulse?” A dangerous method, David Cronenberg, 2011
“Bacteria and fungi abound to give us metaphors; but, metaphors aside (good luck with that!), we have a mammalian job to do…” Donna Haraway, 2015[1]
Com tantas possibilidades de sexo digital, oral, vaginal, anal, virtual, presencial, com ou sem preservativos, mediadores, vibradores, oradores, levanta-se, naturalmente, a questão do que conta como sexo a sério.
Pode ser da minha experiência limitada, mas não tenho tido acesso a muitas versões públicas femininas do sexo.
Pelo contrário, abundam relatos na literatura de como é espetacular para os homens ver-nos suspirar, gemer, contorcer e arfar, segregar mucos e perfumar dedos (com sabores correspondentes).
Impera, por uma questão de justiça e representação de visões plurais, introduzir uma visão feminina do sexo, a partir do que aprendi comigo e com o trabalho de campo das minhas companheiras. Sim, falamos umas com as outras. Não tanto dos sucessos e insucessos, mas de detalhes, pequenos detalhes, como quando eles gritam pelas suas mães, (D)deus(es), Cristo, entre outros(as).
Também se tornou relativamente frequente separar o sexo de puro prazer do sexo com transferência emocional, psíquica e afetiva. Como dizia uma companheira: “para me vir só preciso de dois minutos sozinha na casa de banho”. Esta afirmação contrasta com a ideia radical de que há um sexo impuro, que vai além da transferência de fluidos e doenças venéreas, espasmos, arrepios febris e diversas contrações musculares. Para percebermos de que se poderá tratar este outro sexo, temos de mergulhar nos anais da psicanálise e da biologia, e, acima de tudo, onde eles se encontram.
Comecemos por Sabina Spielrein.
Masoquista, paciente, amante e discípula de Jung, escreve uma obra-prima: “Destruction as the cause of coming into being”[2]. Avança uma teoria formidável: o sexo, a nível psicanalítico, mimetiza a simbiose dos gâmetas:
During reproduction, a union of female and male cells occurs. The unity of each cell thus is destroyed and, from the product of this destruction, new life originates. (…) The individual must strongly hunger for this new creation in order to place its own destruction in creation’s service. In more highly organized multicellular organisms, the whole individual will obviously not be destroyed during the sexual act. (…) The fusion of germ cells during copulation mimics the correspondingly intimate union of two individuals: a union in which one forces its way into the other. The difference is merely quantitative: it is not the entire individual that is incorporated, but only a part of it that, at this instant, represents the essence of the entire organism. (…) It would be highly unlikely if the individual did not at least surmise, through corresponding feelings, these internal destructive-reconstructive events. (p. 156-157)
De acordo com esta perspetiva, é necessária a destruição do indivíduo para que haja um verdadeiro ato sexual. Sem este arriscar o ego, não há sexo. Como diz Sam Vaknin, “todos os narcisistas morrem virgens”. Posição que contrasta com a de Kurt Kobain: “ninguém morre virgem, a vida fode-nos a todos”.
Para compreendermos a diferença de posições entre Sam Vaknin e Kurt Kobain, temos de ler conjuntamente Sabina Spielrein e Lynn Margulis.
Lynn Margulis sabia que a simbiose não era um conto infantil onde, nas palavras de Woody Allen, “O leão e a gazela poderão jazer juntos, mas a gazela não há de dormir muito bem.” A simbiose é uma penetração de células flageladas noutras[3], para criar novas espécies. Claro que se assemelha a uma infeção e, porque não, a uma invasão. Certamente que pode sê-lo. O que faz a diferença entre uma invasão parasítica e a simbiose não é um acordo pré-nupcial consentido, mas sim a experiência que decorre para ambas as partes envolvidas.
Havendo sexo simbiótico, acontecem coisas estranhas. Habita-se, pelo menos por uns segundos, a pele do outro. A carne do outro. A vida do outro. O sentir do outro. Somos habitados. Ficamos infetados. Não somos bem os mesmos. Aceitamos desejos, sofrimentos, dores e amores. Incorporamos desejos, sofrimentos, dores e amores. Fica uma porta aberta para mais, até que fiquemos saciados, fartos ou nauseados.
Pode o sexo acontecer à distância de um clique, de um vídeo, de uma fotografia? Pode o sexo acontecer em letras, em papéis, ou requer lambidelas?
Se eu quiser lambidelas posso sempre ter um cão. Ou comprar um selo.
Se eu quiser letras posso sempre ler um jornal.
O sexo tem de ser visto como é: uma relação.
Uma ralação.
O sexo nunca vai estar em nenhum lugar ou partícula.
O sexo vai sempre acontecer em todos os lugares com ou sem partículas.
Este sexo, separado da sua necessidade orgânica ou melhor, não definido apenas pela sua componente orgânica, tem nomes. Demissexualidade[4], noetissexualidade, sapiossexualidade.
Que trágico que coexistam duas visões tão distintas do sexo: uma de acordo com a sua etimologia – seccare (dividir, cortar); e outra, de acordo com a Sabina e a Lynn – fundir.
Talvez na idade do ego acabe o sexo tal como o conhecemos.
Ou talvez haja sexo viral – da destruição virá a criação.
[1] Donna Haraway, 2015. Anthropocene, capitalocene, plantationocene, chthulucene: Making kin. Environmental humanities 6.1: 159-165.
[2] Sabina Spielrein (1994). Destruction as the cause of coming into being. Journal of Analytical Psychology 39, 155-186.
[3] Lynn Sagan (1967). On the origin of mitosing cells. Journal of theoretical biology, 14(3), 225-IN6.