Número 3

1 de Maio de 2021

CORPO, BELEZA E SAÚDE

Simpatia por Aracne

RITA SERRA

Vejo uma aranha no meu sobreiro. Come uma formiga. É uma tecedeira. Não sinto muita afinidade com ela. Aliás, sinto pouca, não me alimento de formigas. Mas há uma coisa que ela faz que eu também faço: fios.

Os fios são importantes para tecer. E os tecidos dão para fazer roupas. E as roupas dão para vestir. Parece tudo óbvio, mas não é. Vamos complicar um bocadinho.

Fazem-se roupas porque as pessoas estão despidas. Aliás, as pessoas só estão despidas porque há roupas.

Interessa-me fazer roupas porque não há roupa que me sirva. As roupas pré-feitas não me caem bem. Houve tempos em que tive uma modista. Mas é profissão em vias de extinção. Tive de me transformar numa. E depois pensei: seria capaz de tecer?

Uma escritora é uma espécie de tecedeira. É daí que vem a palavra texto – coisa tecida.

Se me estou a transformar numa escritora, quem sabe se serei tecedeira. E foi com este fio que encontrei Aracne e a sua história.

Aracne merece um capítulo de Ovídeo nas Metamorfoses. Uma história assustadora que passo a resumir. Uma excelente tecedeira, de origens humildes, teve a arrogância de dizer a uma deusa que não lhe devia o talento. A deusa ficou chateada, e desafiou-a para um concurso. E perdeu. Perdeu duas vezes, primeiro, nas capacidades técnicas de tecer; segundo, porque enquanto a deusa representou a glória, competição e vitória dos deuses sobre os seres humanos, Aracne representou os seus disfarces, truques e ilusões usados para dominar os seres humanos.

A deusa teve mau perder. Bateu-lhe na testa com a lançadeira de madeira, e aqui vem a surpresa: Aracne, a provocadora, quando desafiada, sucumbe à humilhação e à vergonha. Enforca-se perante tal comportamento da deusa. A deusa, apiedada, permite-lhe viver pendurada como aranha. O corpo sofre a metamorfose, e a nova forma é passada a toda a sua descendência.

A história é incrível e poderosa. Mas o que é terrível é procurarem transformá-la numa fábula, cuja moral é o castigo de Aracne por ser arrogante. Se isto não é culpar a vítima, então não sei o que é.

Eu percebo a confusão de Aracne. Coitada, falhou na leitura social. Falhou pelo menos duas vezes. Primeiro, falhou no reconhecimento da deusa disfarçada de velha, que a aconselha a suplicar perdão à deusa. Segundo, falhou no reconhecimento de que competia não com uma mulher, mas com uma deusa com poderes mágicos que não joga limpo.

Pobre Aracne, era muito má na leitura social, do seu próprio corpo e das suas emoções. Claramente devia ter alexitemia. Ficou ruborizada ao ver a deusa, mas a confiança nas suas habilidades traíram-na. Confiou nas suas capacidades cognitivas para representar o mundo e ver os enganos e ilusões dos deuses, não se conseguindo ver a ela mesma nessa mesma tela, nessa mesma trama. Perante a humilhação, claramente insuportável para alguém que subiu verdadeiramente a pulso sem nenhuma escada social, matou-se.

Aracne não conseguiu conceber a hierarquia. Não representou seres superiores. Ignorou as suas pretensões e rasgou-lhes as roupas e os disfarces. Talvez por isso se alimente de animais que não veem as teias que ela tece.