Entre os Ossos

18 de Setembro de 2021

somos osso, somos?!? osso somos.

MARIA MANUEL VIANA aka MM

Não saberia precisar o momento em que as coisas começaram a correr mal, num desvario galopante que ainda hoje o confunde. Terá, talvez, sido o assunto indicado no email – OSSO – a desencadear os factos, mas os tempos não batem certo porque, nessa altura, ele já andava à volta com os palíndromos, a traduzir os capítulos contados por Noel Leon e os seus pais palindromistas, a tentar inventar palíndromos em português que se aproximassem dos palíndromos originais, soa como caos, por exemplo, ou O céu em meu eco ou Ame o poema ou a sua coroa de glória, Ama Fidel e difama e lembra-se de ter pensado logo que OSSO é palindrómico, o problema é o resto da frase, há aquelas evidentes, Ana ama Ana, mas isso nada tinha a ver com o franquismo e a transição, Osso sim, os ossos dos republicanos executados por ordem de Franco, só que isso não vinha no romance e ele sabia que a reescrita tem limites, um tradutor não pode convencer-se de que o escritor é ele, dá mau resultado, como a História o tem provado, mas traduzir palíndromos é dificílimo, experimentem e depois digam-me, e já então os dias estavam cada vez mais curtos, não no sentido das estações, nada disso, e sim porque a transformação física começava já mais cedo, ele não era a parva da Cinderela que só podia dançar até à meia-noite senão transfigurava-se numa abóbora, não era bem assim mas tanto faz, nele era a bossa que crescia de tal forma que era impossível disfarçar, se quando era pequeno e ainda ia à escola lhe chamavam camelo e Dragão-de-komodo, sem saber se era por causa das unhas que pareciam garras, pelo mau cheiro que exalava, pela gordura excessiva ou, pior ainda, por ter nascido por partenogénese, isto porque a nenhum dos colegas ocorreria a possibilidade de ele ser filho de uma mãe tão linda que as pessoas nem conseguiam desviar os olhos dela e de um pai que faria corar o Cary Grant de vergonha, embora duvide que algum dos companheiros soubesse, nesse tempo, o que era a autofecundação, que seria agora que a bossa crescia mais e mais e as unhas tinham passado definitivamente a garras, embora retrácteis?, e muitas vezes se perguntava se era esse o motivo por que os pais tinham partido na longa viagem de onde nunca regressaram, deixando-o ao cuidado de uma criada velha, à qual se seguiria uma série de criadas-sobrinhas-primas mais jovens e iguais, vindas todas de uma terra algures na Beira, que iam ao correio e aos apartados antes da magnífica invenção da internet e dos emails e das transferências bancárias que lhe permitiam nunca se encontrar com o editor, cujo, aliás, nem conhecia, o que lhe assegurava o mais perfeito e completo anonimato, além do tutor e administrador dos bens que os lhe pais deviam ter deixado, primeiro o Vilaça pai depois o Vilaça filho que só se distinguiam por o primeiro usar chapéu e que nunca o incomodava, porque as transacções financeiras eram com a criada que ia às compras, cozinhava e limpava o pó excepto no escritório dele em que ninguém entrava, porque se lembrava bem da discussão entre os pais antes da longa viagem, quando descobriram que ele tinha copiado integralmente o Dom Quixote, não uma mas duas vezes, na página esquerda o do Cervantes, na direita a tradução correspondente, e fora assim que aprendera espanhol e mais tarde se tornara tradutor, nunca tendo percebido o alarido que tal feito provocara nos pais. E fora então, como que surgido do nada, que aquele email lhe aterrara no computador, com a palavra OSSO no assunto e ele lembrara-se de um livro argentino que traduzira e que, pela 1ª vez, entendia na sua plenitude: “Deveria inventar-se um novo género literário: a ficção paranóica”, pelo que não leu o texto do email, teclou apenas a continuação da frase do portenho, “Todos são suspeitos, todos se sentem perseguidos”, e sorriu naquele seu esgar de sáurio enquanto rasgava os pulsos com as garras, sentia a bolsa a crescer e o peso dos cornos que há já alguns meses lhe tinham aflorado na testa o fazia tombar sobre o teclado, e por fim ainda conseguiu carregar no enter, no meio de sangue, ranho e lágrimas.