Número 43

14 de Setembro de 2024

O DESPLANTE

Subir a noite

FREDERICO MARTINHO

São três da manhã quando nos põem nas mãos os bastões de caminhada e uma lanterna na testa e nos encaminham para uma escadaria que haveria de se transformar, primeiro, nuns socalcos de terra aberta pelas águas escorrentes da montanha, depois, em lajes de pedra vulcânica exposta em golpes nos mantos de urze que cobrem o sopé. Depois de poucas ou nenhumas explicações, como se esperassem de nós uma disposição automática para nos embrenharmos na escuridão em busca de sustento que nem cães de caça largados no encalce dos segredos dos animais selvagens, farejando as pegadas, as fezes, os tufos de pêlo presos nos silvedos, fincamos as facas nos dentes e atiramo-nos contra o silêncio negro que nos reservaram. Atiramo-nos contra uma parede de rocha que brotou demasiado rápida da terra ao ponto de ter petrificado as ondas que lamberam as primeiras horas de atmosfera, uma prova de que mesmo a mais rija das criaturas é cuspida num trabalho de parto tão fluído quão doloroso, e que vem dar à costa num rebentamento de águas no ventre de uma maré viva e quente. Sem muito a questionar, tomamos de assalto a encosta como guerrilheiros leais a uma bandeira hasteada no pico dos picos, fazendo do instinto uma decisão feroz perante o cenário escuro de uma noite sem luar. Passo a passo, embrenhamo-nos nas boscagens de faia-da-terra e uvas-do-mato, sem distinguir senão o seu recorte iluminado pela luz da lanterna, que faz de cada um destes exemplares retirados do breu uma excrescência de um bicho adormecido desde a última erupção. As ervas despontam do desconhecido como exemplos de formas vivas, numa espécie de ambiente familiar que nos recolhe no conforto de um bioma terrestre que nos pertence apenas nas memórias de infância quando as crianças rastejavam no mato raso a simular os répteis que temiam. O cenário era o de um grande insecto composto por vários de nós a lavrar a noite com as lanternas, com os pés e com os tinidos dos bastões metálicos nas pedras, numa subida cada vez mais silenciosa à medida que o suor escorria nas costas de cada um dos condenados. Dada a opacidade que cobria o redor da montanha, a caminhada fazia-se na ignorância do que se trilhava, onde para além de uma fina lâmina que distinguia duas nuances de preto, em que uma correspondia ao monte e a outra ao céu, não deixavam de fazer parte do mesmo corpo apagado aos olhos que nem as pequenas luzes desvendavam. E se a intuição de que o que era pedra a erguer-se em altura emprestava aos caminhantes uma segurança e energia, pois sabiam que naquela penumbra podiam espetar os pés e as mãos, o outro lado configurava um vazio aterrador de onde só sopravam ventos mornos e os ecos das coisas que caíam. Contudo, a expedição não cedia a hesitações, talvez porque ignorava o vazio escondido pelo lençol escuro da noite, que não só escondia um eventual precipício, como velava o tamanho real da empreitada vestida de preto. E porque tudo era praticamente indistinguível para além da distância dos braços e do alcance das lanternas, nós, os batedores daquela esfinge nocturna, uníamos os pés e os olhos num semblante focado no chão cada vez mais íngreme, seco e hostil. Quando, por fim, se sentia que o vento já não era apenas um sopro lateral mas que chegava com outra pujança e de outras direcções, um vento oriundo do Sol, que nos acordava da cadência repetitiva dos passos e do sono que dormíamos mesmo em trabalho de encalço, como se despertássemos, folgados, de um descanso inabalável, e uma luz quente dividia o horizonte em dois, destruindo a abstracção das últimas horas, levantou-se no ar uma loucura diferente, já não empenhada em fazer de nós mineiros nas profundezas de um bem maior, servindo com honra e fúria e músculo, a mastigar a pedra e o carvão e a noite, perdidos numa engrenagem montada para que não víssemos senão as costas do outro à nossa frente, mas sim uma nova mentira, brilhante e doce, empoleirada no monte de magma petrificado, acima das nuvens e de qualquer suspeita, oferecendo frio a seis graus e vapores de água a trinta. Enebriados pelo arrancar do dia numa contagem decrescente que nos cega e nos inscreve no coro alto do cume, atiram-nos o dia para cima, com a sua magnitude e alegrias predispostas a fotografias que ninguém dá vazão. Uma espécie de euforia toma conta do grupo, reis da montanha e do mundo, cantamos e bebemos daquilo que nós próprios carregámos. A calada da noite transformou-se na indiscrição de uma manhã sonhada. Despeja-se a prata nessas primeiros minutos até alguém ordenar o início da descida. Nesse momento atenta-se para a imensidão da cratera e para a aridez do mundo aos nossos pés. O que em tempos explodiu agora jaz em deserto. Os vapores quentes atraem alguns estorninhos e tentilhões, mas pouco mais. Iniciamos a descida pelo mesmo caminho que se trilhou na noite. Agora, de dia, tudo nos parece ainda mais belo e mais perigoso. Voltamos para baixo, exaustos, sem que nada indicie uma revolução.