Dia 3.
Acabámos finalmente de arrumar todas as coisas necessárias ao quotidiano. Ainda ficaram várias caixas de cartão por resolver, mas é mesmo assim que se processam as mudanças: há coisas que acabam por nunca ser desencaixotadas, inutilidades que insistimos em transportar. O que há a fazer é aceitar que este é um dos pesos que o sedentarismo nos reserva e seguir em frente. Nesse sentido, comprar a antiga casa do padre foi uma excelente ideia, pois tem espaço para dar e vender. A antiga sala da catequese é agora um depósito de esperanças pela luz do dia que, quem sabe, nunca se virão a concretizar. Há uma certa beleza perversa nisto que não sei se mais alguém vê. A Matilde anda assoberbada a pedir orçamentos de caixilharias de vidro duplo, para ver se temos esse assunto vital tratado antes da chegada do inverno, que aqui será muito mais rigoroso que em Lisboa, e os miúdos estão deliciados a aproveitar o enorme pátio, que havemos de transformar num quintal com a horta biológica que sempre desejámos. Teremos agora de reservar tempo para descansar e conhecer melhor a zona, usufruir desta calma por que tanto ansiámos, sentir o lugar, conhecer as gentes. E, mais importante que tudo, habituarmo-nos à noite. Pensámos que a ausência dos ruídos da cidade nos facilitaria a vida, mas os sons do campo têm-nos perturbado o sono. As motas paleolíticas da população, o regougo cruciante das raposas e, principalmente, os pássaros que anunciam a alba, serão mitigados pela caixilharia supra, mas até lá temos de arranjar maneira de passar noites reparadoras. A Matilde sugeriu uns tampões de ouvidos, mas eu acho que isso é fugir ao problema.
Dia 4.
Fomos hoje até ao sopé da serra para tentar conhecer a família de Oeiras que para cá se mudou há um ano, com direito a reportagem de lifestyle sobre o regresso à ruralidade que tanto nos inspirou a fazer o mesmo, mas ficámos a saber que voltaram para a capital há coisa de uma semana. A vivenda que mandaram construir ao estilo da região mas com janelas de jeito tem agora uma placa da agência imobiliária a anunciar a oportunidade de compra e uns enormes genitais masculinos pintados no volume a nascente. Um homenzinho que mora numa residência de construção vernacular no outro lado da estrada meteu conversa e contou-nos que não se adaptaram. A gota de água terá sido quando lhes esquartejaram o labrador e penduraram as fatias nos barrotes da pérgula. Era escusado os miúdos ouvirem aquilo, mas já não fui a tempo de lhes tapar os ouvidos. O Ruizinho, em especial, ficou muito agitado e com medo de que aconteça alguma coisa ao Tareco. O senhor, que teremos de evitar de futuro, disse que, tratando-se de um gato, o mais certo era que acabasse comido por uma raposa. Por via das dúvidas, o Tareco não volta a ter ordem de ir à rua. É pena, mas sempre foi um gato de apartamento, não há de estranhar.
Dia 5.
Foi uma noite muito difícil. O Ruizinho só lá foi com um anti-histamínico de primeira geração, mas mesmo assim acordou cedo, com os pássaros. Como se não bastasse, às 7 da manhã já tínhamos a vizinha das traseiras, nitidamente embriagada, a bater-nos à porta a protestar porque uma folha do nosso solitário limoeiro tinha ido parar ao quintal dela. Ainda me passou pela cabeça perguntar-lhe como sabia que a folha era do nosso limoeiro, uma vez que ela própria tem, no seu quintal, uns três ou quatro, mas a Matilde atalhou pedindo-lhe imensa desculpa e jurando que não se repetiria. Resolvemos aproveitar para ir à farmácia e comprar os tampões para os ouvidos e comprimidos de raiz de valeriana, mas não tinham, só mandando vir. Assim, achámos que o melhor era metermo-nos no carro e ir à cidade. Sempre aproveitámos para espairecer, fazer umas compras de jeito e almoçar fora pela primeira vez desde a mudança. O pior foi quando voltámos a casa: alguém tinha pintado uns genitais masculinos na porta de entrada. A Benedita riu-se, o Ruizinho não percebeu bem o que era, a Matilde e eu ficámos assustados. Alguém tinha feito aquilo em plena luz do dia numa das artérias mais movimentadas de acesso ao centro da povoação. Mandei os miúdos para o quintal enquanto fui buscar a lixadora e removi a pintura. A seguir tentei ter uma conversa a sério com a Matilde acerca do que se passava, mas ela tinha bebido uma garrafa de gim e já só balbuciava umas coisas acerca de Thoreau.
Dia 37.
A procissão era para ter passado aqui à porta, logo de manhã cedo no domingo das festas, e seguido para a igreja. O certo é que, depois do meu ato tresloucado, não teremos outro remédio se não ir embora. Vai ser um problema mudar outra vez a Benedita de escola, logo agora que os colegas já não lhe batiam todos os dias, mas há de se habituar à ideia. E pode ser que isso a ajude a esquecer o que aconteceu ao Tareco, pelo qual ainda chora todas as noites antes de adormecer. O Ruizinho ficou contente com a promessa de um gato novo, igual ao que aparece na publicidade ao ar condicionado e que nos vai custar uma fortuna. No fim de contas, o que salva uma família são as crianças.