Quando tinha sete anos, a minha irmã disse que se chamava Tatiana. Tatiana Ulanova, bailarina como ela. Declarou isso durante um almoço, quando estávamos os quatro à mesa e não havia tempo para grandes conversas, pois as aulas recomeçavam cedo e o meu pai tinha a tertúlia à espera. O café ainda lá está. A mesma mesa, a sua cadeira. Mas só a minha irmã se lembrará de Tatiana Ulanova, a bailarina. E a minha irmã lembra-se de tudo, mas de outra maneira.
À noite, quando a minha mãe a chamou pelo nome de registo, ela não respondeu. Virou-se e disse:
– O meu nome é Tatiana. Julguei que tivessem percebido.
E o que impressionou a minha mãe, e a mim que passava no corredor, foi a voz. Não era aquela voz cortante tão comum nela, nesses tempos. Era uma voz doce e com vogais abertas, que procurava compreensão.
Chamava-se Tatiana Ulanova. E tinha renascido para um universo de conciliação e paz, de apreciação calma das coisas e de meditação.
Tinha uma casa de bonecas feita por encomenda a um carpinteiro da Baixa. Chamavam-lhe o bonequeiro, ou bonecreiro. Nunca percebi o nome certo daquele móvel horrendo e envernizado, porque nunca me aproximei daquele mundo em miniatura, com pequenos seres de expressão congelada e móveis que reproduziam uma família assustadora. Mas encontrávamo-la agora em silêncio, olhando como se visse pela primeira vez. E o mais surpreendente era a tranquilidade da sua cara, tão diferente dos traços de revolta que a marcaram quando descobriu que era difícil urinar de pé, saber de cor as equipas de futebol da segunda divisão ou jogar ao Bone-Catrapone na posição de almofada.
– Um disparate! – foi assim que reagiu a minha família neurotípica.
Tatiana era uma menina de tranças que chegara do Brasil há meses com uma irmã. Era enorme, e a minha irmã franzina. Pernas altas, musculada, tranças grossas. Viera a meio do ano, com a irmã, Alexandra e ficaram internas, como as meninas que tinham os pais na Venezuela ou no Congo Belga. Eram as melhores em tudo o que fosse físico. No vólei, nos aparelhos do ginásio, no ballet.
– No resto, estão atrasadas, os programas são outros… – ouvi dizer a minha mãe.
Percebia-se que eles não estavam contentes com a nova identidade da minha irmã. Não tanto pelo facto em si, mas pela escolha feita. Eles teriam preferido que a minha irmã fosse Marie, como Marie Curie ou Irene. Ou simplesmente Ana, como a Karenina. Mas a minha irmã ainda não tinha idade para esses referentes e não percebia que a Tatiana fosse outra coisa que um modelo universal irrecusável. Além do mais, ela não era Tatiana. Era Tatiana Ulanova. Uma bailarina do Colégio Grandet e em breve do Bolshoi de Moscovo.
Ninguém ficou muito preocupado, na verdade. Tatiana revelou-se muito mais razoável do que a minha prévia irmã. Convivemos bem com ela. Não dava nas vistas. Calada à mesa, dormia bem e não fazia birras.
A minha irmã não desapareceu. Era ela quem ia para o Colégio, de manhã. Quem se sentava na carteira com o banco cujas rodas rolavam em calhas oleadas, uma antiguidade que não dava jeito nenhum, mas que ela teimou em usar quando suspeitou que pudesse levar outro destino. A maior parte do tempo era ela mesma. Pedia à menina Etelvina para lhe fazer as tranças. E era nessa operação que a cara se adoçava.
Uma vez aproximei-me, esforçando-me por parecer levar aquilo a sério.
—Tatiana? — sussurrei-lhe.
—Não vês que as tranças ainda não estão prontas? — respondeu.
E aquilo fez sentido, subitamente, para mim.
Tatiana Ulanova talvez não conhecesse a minha irmã. Mas a minha irmã conhecia-se a ela e a Tatiana. E passei a conviver com as duas. A partilhar aquela excentricidade, aquele silêncio. Cúmplice envergonhado. Esforçando-me por ser Peter Pan, primeiro. Jacques Thibault, do livro de que o meu pai me lia passagens entusiasmantes, o estudante de Coimbra, Fernando Assis Pacheco, quando saiu Cuidar dos Vivos, o Régis Debray, preso na Bolívia. Mas, ao contrário dela, sempre envergonhado, sem convicção, tolhido pelo buço e pela camisola de lã verde-escura que o uso deformava. Sempre sem que ninguém visse em mim, outro, que o puto que não ia à catequese.
Tatiana Ulanova dançou nos ginásios do Colégio, nos palcos do Teatro novecentista, nas festas anuais do Colégio Grandet, debaixo da efígie do grande Eugénio Grandet, origem e inspiração do nosso modelo educativo, com que os meus pais, surpreendentemente, conviviam sem dificuldade. Tatiana Ulanova pertenceu à equipa de vólei que ganhou o campeonato interescolar. Tatiana Ulanova ficou em terceiro na Corrida de S. Silvestre, em infantis. Tatiana Ulanova fugiu do Colégio, na quarta classe, e foi apanhada pela Dona Cândida, uma contínua esbaforida, quando deambulava no Jardim dos Frades Crúzios, um lugar sombrio. A minha mãe foi chamada à diretora e ouviu o espanto e a recriminação, a exigência de repreensão e castigo. Mas sabia que quem estava sentada ligeiramente à sua frente, virada para a Diretora, não era a verdadeira culpada, mas apenas a que por ela respondia. E que não iria castigar uma inocente, nem uma menina que nem sequer era bem da nossa família.
E uma tarde, a minha irmã chegou a casa com a minha mãe. Estavam afogueadas. Com aquele rubor que se segue a uma grande emoção escondida. Ou a um peso interior que se desvanece. Vi que a minha irmã trazia uns cabelos curtos, lisos e alourados e um ar tão leve e fútil como as meninas ao vento da idade. E percebi que Tatiana Ulanova, os anos da infância, a noite da Idade Média, o Colégio Grandet, tinham acabado. Só não sabia que tinha chegado a Sylvie Vartan.