Terroir
Palavra que também designa o conjunto das nossas preferências.
1. Lampejos
Acontece-me estar a lavar a louça e ter lampejos de memória. Não são elicitados por nada de especial, tanto quanto me dou conta. Pode acontecer durante os gestos mecanizados com que limpo a louça dos resíduos alimentares, lavo algumas terrinas demasiado sujas, e todas as facas de cozinha e frigideiras. A maior parte da louça é colocada na máquina de lavar e uso uma ordem diferente da Luísa, o que constitui uma disputa de baixa temperatura. Ela não coloca as peças maiores do faqueiro no compartimento apropriado, dispõe-nas ao longo do eixo menor do tabuleiro, encostadas ao bordo da porta. Não lava previamente a louça. Nenhuma louça. Despreza a ordem rigorosa com que disponho os talheres: facas à frente, colheres no meio e garfos atrás. Utiliza, para louça comum, um compartimento claramente destinado a peças de maior dimensão, conchas, espátulas, escumadeiras, suportes, pás, servidores. Quando estou nesta operação automática, tenho o TM encostado ao escorredor da louça e vou dando conta do expediente. Mas a maior parte do tempo, canto, assobio ou declamo versos desgarrados que me vêm à cabeça. É nesses momentos que, ultimamente, me surgem lampejos de memória. São imagens brevíssimas, em regra acompanhadas de uma sensação. Quase sempre desagradável: culpa, ameaça, ameaça, culpa. São icebergs do passado que afloram. Uma imagem distantes de um verão com uma refeição à beira de umas árvores, numa quintinha algarvia, ou do mar ao fim do dia numa prancha perdida de wind surf, ou de uma criança muito pequena numa praia do Oeste, correndo veloz na areia, ou de um carro que se aproxima, hesitante, da fronteira agreste de Trás os Montes, ou da solidão de um quarto de Lausanne, de uma varanda em Lamego, de um jogo de futebol no campo de Santa Cruz, de uma aula de Moral no liceu D. João III, do quarto da casa da infância durante as longas manhãs de doença. Imagens muito breves e mal reconhecidas, como se fossem dar origem a uma recordação e depois se perdessem, palavras debaixo da língua, estranhamente próximas e disponíveis mas que se escapam e a que não posso regressar, ficando apenas um cheiro, uma sensação de calor, um ruído abafado, uma dor no peito.
2. Jurema
Na cerca do Hospital apareceu uma galinha. Uma pequena galinha de plumagem escura e crista eriçada. Chamaram-lhe Jurema. Um nome com ressonâncias a José de Alencar, que pensei ser de origem tupi, mas depois percebi tratar-se de um personagem já célebre no imaginário infantil brasileiro. Jurema passeia-se pelo parque. Os seguranças mandam parar o trânsito para a Jurema passar. Trazem-lhe comida. Adora fruta, é o que dizem. As crianças deliram com ela. As pessoas espantam-se com a sua presença e com a forma segura e vertical com que os aborda. A marcha decidida, apesar de bamboleante, demonstra um conhecimento do local e dos utilizadores. Arranjou abrigo numa sebe, inicialmente, depois mudou-se para uma árvore junto ao pavilhão dos testes respiratórios. No final do ano, a revista do Hospital elegeu “a personagem do ano”. A galinha foi a mais votada, com estrondosa maioria.*
Umas semanas atrás Jurema desapareceu. O segurança Eufrásio não a viu na ronda das seis da tarde. Não a viu, no ninho, à hora de jantar. Correu os parques da cerca do Hospital sem a encontrar. No dia seguinte, ele e os colegas passaram a pente fino os registos da videovigilância. Jurema fora atraída a um carro no Parque 4 e levada para destino incerto. Um dos seguranças identificou a raptora. Era visita do Internamento. Esperaram-na atentamente. E mal a avistaram, confrontaram-na. Desculpou-se como pôde. Não vou repetir as justificações. Uma pessoa argumenta sem convicção quando é surpreendida em flagrante e ainda por cima ignora as provas contra si acumuladas. Julgava que era uma galinha perdida. Os seguranças explicaram que era a personalidade do ano, no Hospital. Sucedera a um médico ilustre, professor e cirurgião. E a um cantor célebre, que fora operado nesse ano e dera um concerto de agradecimento que ficara na memória de todos e não só dos que o trataram. Disse que ia visitar o marido, que a galinha entrara na viatura de livre vontade e no dia seguinte seria trazida de volta. Que estava boa e não estranhara. Que pensara que era uma animal perdido. Coisas que as pessoas dizem.
Sucedeu que a polícia foi chamada ao Hospital pouco tempo depois. Um carro em circulação batera num outro, estacionado, e o condutor recusava-se a admitir a culpa. E quando a raptora descia as escadas dos quartos, viu os agentes fardados no hall da clinica. Dirigiu-se para o segurança, alarmada, e pediu-lhe para não levarem o incidente tão a sério. Ela ia já buscar a galinha.
—Trouxe-a de imediato— termina o Eufrásio. Vinha bem, como se nada tivesse sucedido. Mas a pedir carinho. Não sei se já aconteceu consigo? Ela deixa que nos aproximemos. Ficamos ao lado dela, nunca de frente. E assim, nessa posição, ao fim de algum tempo, agacha-se, fica muito quieta e permite que a afaguem.
O Eufrásio não esconde a comoção. Nem eu. Ontem choveu e sopraram rajadas de vento frio, do norte. Vi passar a Jurema. Uma rabanada de vento ia-a levando. Abriram-se as penas sob as pequenas asas. Vi o frágil corpo de galináceo a ser arrastado à frente dos faróis e fiquei imóvel, sentado ao volante, com os alarmes do carro ativados. Que ligação se estabelecera entre gente tão distinta entre si, e aquela ave insignificante, quase depenada? Como é que podíamos ser simultaneamente tão alheios ao miserável destino a que votámos esta espécie, prisioneira concentracionária para abate e consumo dos seus ovos estéreis, e nos enternecíamos com um deles, só porque lhe permitíamos a domesticidade do nosso recreio?
* Não há, felizmente, maiorias absolutas. Soube entretanto que alguns funcionários não veem com bons olhos (esta metáfora não é inocente porque o Hospital é célebre pela especialidade de Oftalmologia) a circulação de um animal tão inferior num Espaço de Saúde.
3. A cara dos loucos
Há pessoas nas ruas, vagueando ou levadas por mãos de cuidadores, que trazem estampada no rosto uma das emoções fundamentais. Ou misturas, mas parcimoniosas. Antes eu não percebia do que se tratava. Julgava que eram pessoas do vasto mundo desconhecido. Hoje sei que são os loucos remansados. Imaginei que cada um destes infelizes mostrava, congelada, a expressão com que enlouquecera. De facto, a face reflete as áreas cerebrais danificadas. Se eu enlouquecer, que a minha cara mostre a beatitude do dia em que te vi.