Número 31

29 de Abril de 2023

TERROIR

Terroir 4

LUÍS JANUÁRIO

Terroir

Palavra que também designa o conjunto das nossas preferências.


Mar Becker é Marcela Andrese Becker, nascida em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em 1986, filósofa.

Autora do recente Canção Derruída, editado pela Assírio Alvim em 2023, reunindo o seu livro Sal, publicado pela mesma editora em 2022, no Brasil, e A Mulher Submersa de 2020, revisto.

Um dos elementos de maior valia neste livro é o vocabulário: a que, humildemente, chama de magro (p. 15) ou em estado de desamparo (p. 114).

Mar Becker é, de facto, uma vocabulista. Cria, ou emprega de forma particular, palavras caídas em desuso: derruída, no título, associada a canção, (p. 43) e depois referida à sua Arte Poética (p. 65). Mas derruído pode ser também o descarnado mar. As palavras são raras, o vocabulário é construído a custo. Para descrever as casas da infância, as janelas viradas para dentro, a névoa da chuva fina que não pára de cair, e a névoa da água em ebulição nas panelas, a fervura da água que esconde a cara da mãe que cozinha, o banho de banheira a dois. Para descrever o amor. E aí o vocabulário é particularmente difícil. Porque, diz-nos ela, todas as palavras que erguemos para amar, guardam uma cesura. O silêncio é sempre superior à palavra achada. Porque ela ama (a casa) como perda e diz que o amor entre mulheres não tem palavras, vive do faro, do gosto, das subtis pistas que o desarranjo da vida em comum cria. E tem a curiosa ilusão de género de pensar que foi a língua dos homens que inventou (demasiadas) palavras para o amor.

Apesar disso, as palavras que ela reuniu são jóias, filigrana de areia. Podem ser rudes, eruditas, inesperadas, elementares. Mas vêm e conduzem a lugares apetecíveis.

Canção Derruída é um livro de mulheres: a mãe, a avó, Manoela, a irmã com quem partilhou a infância.

Ela, a mulher descarnada, anorética, a medusa.

É assim desde que se vê, aos 15 anos, com o cabelo cascateando na nuca, ou como uma trama de tentáculos sobre os seios (p. 40), descem-lhe azuis os ramos pelo pescoço (p. 119).

A medusa é afinal, Safo.

A medusa é ela, cujo auto-retrato é ironicamente desenhado no poema Diário Doméstico: o rosto, nulo, mas em cima um projeto dramático carregadíssimo, maquiada e imóvel (p. 99).

As mulheres vivem em casas. Villa Annes, Villa Epecuén, Casa Longa. Cozinham, costuram, vagueiam pela casa, debruçam-se nas janelas. Janelas molhadas (p. 134), embaçadas (p. 153), que amanhecem cegas (p. 113), descomunais, sonhando. As meninas são meninas velhas. As mães são enormes. Como as luas cheias, alguns dias. As mães são vistas pelas filhas quando estas não enchem as copas dos sutiãs, quando ainda só sangram pelas unhas.

Esta menina, que escreve, está particularmente atenta. Ela aprendeu que há uma hora breve (p. 16), a hora fragilíssima do dia/na divisa entre a noite e a manhã, entre o fim da noite e o começo da manhã (p. 17), quando ainda ninguém ergue a voz na cidade e toda a palavra dita soa como oração, porque guarda toda a língua. (p. 135)

Não se pode falar desta poesia ignorando as palavras que usa:

Vindas da Natureza: Sal, uma rama de sal, mar, derruição do mar, água, água, transbordamento, garoa.

Feitas para nomear: Palavras, língua, sussurros, inaudível, o balbucio. Nomear. Dar nome.

Relativas à Arte de amar: Amar sem tocar. Tocar (uma véspera do dizer). (preencha agora o/a leitor/a).

Os poemas evocam também mulheres bíblicas.

A filha de Jefté (Livro dos Juízes). Jefté foi o oitavo Juiz de Israel, antes da monarquia. Era natural de Gilead e libertou a tribo do jugo de Amon. Depois de derrotar os Amonitas regressou a casa e foi recebido pela filha com incontida alegria. Ao abraçá-la, Jefté lembrou-se, com pavor, da promessa que fizera a Jeová:  ele sacrificaria a primeira pessoa que encontrasse, se regressasse vitorioso.

A mulher de Lot. A história da mulher de Lot é simples e é contada no Génesis: o Senhor Deus quis castigar algumas cidades onde os homens viviam em pecado. Uma delas era Sodoma, na Mesopotâmia. Dois anjos confirmaram o estado da nação e avisaram Lot da eminente destruição. Lot devia fugir e levar os seus. Mas quem se virasse para trás, para ver, por um segundo que fosse, a obra destrutiva do senhor Deus, seria punido. A mulher de Lot virou-se e foi transformada em sal. Jesus Cristo terá contado esta estória como um exemplo de que o castigo de Deus surge sem aviso e de que a desobediência às suas recomendações terá punição exemplar. Uma interpretação mais surpreendente explica que a Bíblia despreza a curiosidade, esse vício humano.

Este episódio foi recorrentemente evocado, sobretudo na literatura feminista contemporânea.  Wislawa Szymborska interroga-se sobre os vários motivos que teriam levado a mulher de Lot a virar-se. Patrik Ourednik diz que ela se voltou ao ouvir gritos e foi petrificada porque Deus não queria testemunhas e, num poema curto muito belo, a nossa Amalia Bautista escreveu:

Si se dió la vuelta porque en medio

de todo aquel incendio pavoroso

ardía el corazón que más amaba.

O que fascina Mar na evocação da mulher de Lot é o ato mesmo de olhar para trás, de receber as chamas na retina, o lugar onde a cidade arde (p. 117).

A menina sem nome, Mar, é a Menina a Caminho, de Raduan Nasaar, antes de sair de casa. É também uma mulher menina, umas vezes sáfica, outras herbertiana. Lê-la é compreender a sua linhagem, ter orgulho de tanta beleza escondida, esforçando-se por se levantar. Um livro que se lê de qualquer ponto, para trás e para a frente, porque referindo-se à mãe, ela captou o momento em que se

foram dissolvendo, mútuas

elas duas:

a filha que tu foste

na filha que eu fui.



Trilogia de Alice,

de Tom Murphy, pel’A Escola da Noite, com cenografia de Henrique Pimentel e Nuno Carinhas, encenação de Nuno Carinhas, interpretação de Ana Teresa Santos, Igor Lebreaud, Miguel Magalhães, Ricardo Kalash e Rita Brütt.

Rita Brütt é Alice

1

A mulher, Alice, sobe ao sótão da casa, o palco. A mulher entra em cena levantando um alçapão disfarçado no chão do palco, pormenor construtivo que remete para a história do Teatro, a ilusão. E para o arquiteto construtor. Para o trabalho de carpintaria, também. A imagem é poderosa. Uma mulher entra em cena num palco que está num nível inferior ao anfiteatro, levantando um alçapão subsumido. Estamos, pois, num espaço reservado da casa. No sótão, lugar onde vão morrendo os vários objetos que deixaram de ter utilização corrente, onde se acumulam insetos, roedores, aves. Esconderijo. Escuridão. Silêncio. Na casa senhorial, o sótão era o lugar mais próximo dos quartos dos criados. Águas furtadas, cave, desvão.

No início da peça, a mulher, Alice, fala e ouve-se, como um eco, a voz de outra mulher. Quando essa outra mulher aparece, tem voz própria e em breve percebemos que é um alter ego de Alice, e que a peça será um monólogo em que as outras personagens entrarão apenas como suporte técnico do monólogo. Neste caso, a mulher no sótão dialoga com uma voz interior sobre o sentido da sua vida de mulher, casada com um homem que talvez venha a ter sucesso económico e com o qual já teve três filhos, cujos nomes soam como os barcos de Colombo na canção de Caetano : a Niña, a Pinta (pausa)

e a Santamaria.

Ou: as naus São Gabriel, São Rafael (pausa)

e a caravela Bérrio.

ou …

E uma nau de mantimentos.

A mulher, Alice, tem 25 anos, corre de um lado para o outro, engole pílulas  duas vezes, como um rato ou  bebe demasiado e fuma, enquanto reflete sobre a sua vida atual de mulher casada, doméstica, mãe e chofer de 3 filhos. Em grande stress, insatisfação e desajuste com a sua educação prévia e as competências alardeadas em matemática e francês.

A conversa entre as duas mulheres reproduz, como disse, o diálogo entre uma mulher e o seu alter ego. É descontínuo, sincopado, muito veloz, demasiado veloz, como a corrente de consciência, alternando pedaços de texto racional ou programático com interrupções de um quizz que podia ser divertido se não fosse tarado e cruel:

— Porque é que as mulheres têm pés pequenos?—pergunta Al, o alter ego impertinente. À terceira vez,  Alice responde:

— Para poder chegar mais perto do lava-louças.

Um armário com roupas de mulher domina o cenário, de portas abertas, escancaradas. Antes de sair, Alice entra e fecha-se dentro dele.

2

Na segunda parte, o cenário é o de uma vereda quase sem trânsito, junto ao muro alto da fábrica de gás. A mulher, Alice, tem agora 40 anos. Bem instalada na vida, ela frequenta um clube de leitura e, entusiasmada por um curso de escrita narrativa, conseguiu atrair um antigo namorado, Jimmie, a quem enviou uma carta imprudente. Encontram-se e recordam o seu amor juvenil, inocente e mal ocultado. Jim entusiasma-se e mostra-se capaz de refazer, com ela, a sua vida. Ela assusta-se com a perspetiva de poder realizar as suas fantasias. Ele reage com violência.

Jim é de facto representado por três atores calvos, de chapéu e longa gabardine preta. As falas são distribuídas pelos três, volteando em redor de uma Alice inquieta. Por duas vezes, como 15 anos atrás,

passa a Cavalaria.

É afinal uma velha recolectora, transportando uma carroça de papel, que pretende não os reconhecer, mas ri de forma tenebrosa.  Durante todo o tempo a chaminé da fábrica emite um gás branco para o ar parado.  O armário, içado por uma grua, oscila por vezes, ameaçador, sobre os atores em movimento.

3

Alice tem 50 anos. Num restaurante de aeroporto, Alice e um marido imperturbável tomam uma refeição. Alice fala-nos. É agora uma mulher rica e elegante num momento terrível da sua vida. Os filhos tiveram destinos diversos, mas todos abandonaram a casa dos pais. Alice deambula, senta-se. A vida dela perpassa pela sua fala. Repetições. Aliterações. Frases inacabadas. Interrupções motivadas pelos criados que servem a refeição e por um bando de jovens que chegou, entretanto. Alice e o marido partem, depois de assinarem as formalidades do resgate do seu filho morto.

A atriz fala. Encarna a personagem de uma mulher de 50 anos. Vimo-la como jovem mãe confusa, como mulher, à entrada da maturidade, convocando um antigo namorado, embalada pelo poder inebriante da escrita. Conhecemo-la. É agora uma mulher magra, com o cabelo apanhado atrás num coque simples, vestindo um elegante tailleur preto. Conta-nos a sua vida recente, o êxito económico do marido, (a peça passa-se na  expansão económica irlandesa conhecida pelos anos do Tigre Celta) como ficaram sós após a partida das raparigas, Sandra, Karen-Marie e finalmente do filho, William. Fala interminavelmente e a voz e o movimento hipnotizam, criam uma expectativa, comovem. Conduzem-nos a um lugar que não queremos que exista. Insinua-se uma revelação que tememos.

“Olhando para isto com racionalidade. Aconteceu o pior.”

A voz é sempre cheia, uma esplêndida voz feminina, frágil e depois irónica, cruel e a seguir terna, auto depreciativa e logo vigorosa. Uma voz que conhece todos os matizes e os usa sabiamente ao serviço de um texto que nos torna cúmplices pela emoção, a inteligência e um conjunto de afinidades com o autor, o encenador, a companhia e a atriz, aquilo a que chamamos gosto.

Uma voz, um movimento, uma cena, um ambiente, um texto. Pausas, frases incompletas, riso, quase choro ou espaço para o choro. A hipnose que referi não é o apagamento do espírito do espectador por uma melodia que entorpece. O espírito permanece vivíssimo pela elevação do texto, que soa por vezes como uma música, acelera, se retrai, repete, em polissíndetos que criam a ilusão de uma fala que não se vai extinguir.

A mulher levanta-se, e o pescoço é tão alto e tão fino que um grito soa em nós antes de se ouvir, arrepiante. A mulher quase cai em auto-comiseração, mas levanta-se, vai levantar-se, elástica, porque é próprio desta mulher levantar-se sempre. A mulher, Alice, a atriz, refletida na chapa metálica que foi o muro da viela e agora parece um biombo filtrando uma luz afinal refletida. As mãos e os braços, as pernas magras da atriz, da mulher que perdeu um filho e com quem partilhámos uma dor indescritível, uma vida, agora suportável pelo mistério do Teatro.

*segundo a didascália de Alice Trilogy