Terroir
Palavra que também designa o conjunto das nossas preferências.
De manhã no Ginásio
De manhã, ao acordar, um pensamento atravessado, um bocado de uma canção, um verso desgarrado. Hoje, uns dias depois de ter morrido a Rita Lee, acordo triste por já ninguém se lembrar do escurinho do cinema
Chupando dropes de anis
Adormeci ao volante de um Chevrolet emprestado na estrada de Sintra, tão perto de Sintra e de mim
E no ginásio, de manhã, a memória de Rita Lee reaparece
Longe de qualquer problema
Perto de um final feliz
Lunge, remada e pullover
a minha cabeça está limpa como quando ando de mota ou caminho nas serras. De cada vez que levanto aqueles pesos, ou os faço subir baixando a pega que se liga por um mosquetão ao cabo da roldana, o esforço dos braços e do tronco liberta a corrente de consciência. Com os aparelhos sucede uma coisa curiosa. Quando passo para o aparelho de adutores, por exemplo, seleciono o pin da carga, e vejo o peso que a utilizadora anterior movimentava. Não posso deixar de sentir uma estranha afinidade sem retribuição, um respeito pelo seu esforço inútil, uma solidariedade. Entre a rapariga e o adulto obscuro passa, no decurso do esforço físico, uma ilusão de partilha que se torna óbvia nos que estão a correr na classe de crossfit, por exemplo, ou nos que fazem as passadeiras soar a 12 km/hora.
Fazer ginásio de manhã cedo é um prazer indescritível. Envolve o pequeno almoço e a sua preparação; a escolha da roupa; a leitura dos jornais; o breve escrutínio da meteorologia; a saída para a rua e a súbita cumplicidade para com os que vão trabalhar antes das sete da manhã, os que já correm nos passeios, os paumés du petit matin regressando a casa, tão jovens e arrepiados, tão pálidos e desprovidos de encanto, no tempo de Baudelaire estes jovens sofreriam de clorose, nos seus uniformes de encapuçados, o primeiro autocarro com excesso de velocidade, a chegada das auxiliares à biblioteca municipal e mais à frente à creche da Fundação, o estacionamento e a entrada no Ginásio. Os atletas mudam com as estações, mas durante algum tempo conservam alguma constância. A rapariga que talvez seja médica, a rembrandtiana, a rapariga anorética, a que só faz abdominais, as alegres comadres shakespeareanas, o homem a quem chamam a diva, o homem macaco, o rapaz careca, o senhor Leandro cumprimentador, o Dé Niro, a mais bela de todas, a enfermeira que corre como as crianças que iniciam a marcha.
A parte sul da cidade ilumina-se. Primeiro a cumeada das eólicas, o edifício central da Penitenciária, ao Arcos do Jardim, um edifício irregular do começo da Avenida Dias da Silva. Depois o Botânico e o que resta do Jardim da Sereia.
A música do Ginásio, a play list dos rapazes da recepção, as aulas privadas cruzando-se com os planos individuais de treino, os PT das aulas e os circulantes, os trabalhadores de limpeza. A babel de línguas. Os equipamentos coloridos. A luta subterrânea das marcas. O balneário, o banho, a toilette cronometrada.
Cada uma destas coisas que se inscrevem numa lista de afinidades, no íntimo terroir, são uma estória, um fio de vidas que ora se enrola no passado, divergindo até anos surpreendentemente próximos e longínquos, ora se dirigem aos pontos interiores que medem o esforço, aceleram a respiração e o bater das válvulas. Cada atleta, ao começo do dia, está fechado na sua peregrinação pelo plano de treino, de confessionário em confessionário até que o bater das 8 da manhã os solta para a cidade. Está feito. Done. Mais uma jornada. Bom dia. Bom dia, Rita Lee. Até amanhã.