Veronica, a verdade, é que está tarde para arranjar mesa. Nas nossas hesitações, esquecemo-nos da roda das cadeiras que por esta altura são arrastadas de um lado para o outro, já sem o cuidado das primeiras horas. O chão já sangra de sobras e de descuidos, e lá dentro, no quente, já não cabe nem mais um corpo. Agora, o melhor será trazer o vinho para a rua e escutar a voz que vem dali. Do broar da multidão alguém canta uma ária. Alguém teve o desplante de ignorar a gritaria, e as suas próprias reservas, para projectar a voz diante de um público desinteressado. Tenho muito apreço por quem se expõe assim perante a incompreensão geral dos outros. A primeira evidência do artista é sempre a coragem, não o talento ou o trabalho, como se gosta de discutir. Charlotte, com o porte da sua voz, arranca as primeiras palmas envergonhadas ao silêncio, entre muitas costas voltadas. Um pouco como um candeeiro que, acendendo por mero acaso, enquadra uma fotografia – como se as imagens pudessem existir sem nós – a canção transforma cada um numa vibração, numa memória encorpada, numa ampliação dos detalhes e, por fim, numa confissão de humildade: somos elevados por uma voz e engolimos a própria garganta, com todos os equívocos que nela escondíamos. Lançaram uma rede sobre nós, quando reparei que me olhavas por entre os ombros dos outros, Veronica. Percebi mais tarde que eram as mãos de Charlotte, moldando no ar o monumento que lhe saía da boca. De traços largos e delicados, na casa dos quarenta, de lábios finos, cabelo a tender para o ruivo, pele que o tempo esqueceu de secar, e olhos suficientemente rasgados para nos balançar no seu diafragma, convidando-nos ou expulsando-nos de uma tristeza que partilhávamos ainda sem saber qual delas. Estávamos ali numa soleira de pedra, de queixos nos joelhos, com o frio a desafiar as roupas e o vinho a desaparecer. Todo eu era pele, pungente, e osso, tremendo. A cidade fazia sentido com as suas canções a estalar o gelo, com o gelo a estalar-lhe a voz. Caía uma chuva miúda quando nos despedimos, e o amarelo da rua desmaiava na turbação – nascia uma lenda.
Charlotte, dizem que o teu nome vem de homem livre, e tu só poderias ser a mulher que suspira pela liberdade cantando dessa maneira. Talvez a tua sina não seja mais do que a que pediste emprestada a Handel, mia cruda sorte, para que olhássemos todos para ti e te invejássemos essa ferramenta de emoldurar a dor. Passou uma semana desde que te encontrámos na rua e agora estamos aqui, no terraço de um hotel de gabarito, gabando-te o turquesa do vestido, a trança no cabelo, e a voz que soubeste curar desde aquela noite desabrida. Ao contrário da última vez, em que te colocavas debaixo do candeeiro de rua na dessaturação nocturna, esperando, tu, pelos teus ouvintes, agora fomos nós que te esperámos, numa sala branca que apagava o brilho do teu vestido e da tua pele, uma sala que não souberam acomodar para a tua chegada, onde o dono se elogiava em ti, como se tu não existisses antes dele (muito antes dele, muito antes de ti). Aqui as pessoas vieram para te ouvir, ou pelo menos para ouvir a tua arte. Nota-se pelo acenar das cabeças que correspondeste à expectativa daquela gente, mas não me sai da cabeça a noite em que te mostravas no escuro, rodeada de ignorantes de ópera, como eu. Sei que procuras, e que mereces, este público que escolheu a sua melhor roupa para vir até aqui, mas perdoa-me insistir na aura com que a humidade da última noite te vestia. Aqui, agora, a luz branca dos focos de tecto a reflectir na cerâmica vulgar de uma sala de pequenos almoços, dilui o som da tua voz no ruído do visível – não me consigo alhear de mim próprio, para te conseguir fazer jus. Experimento fechar o olhos, trocar o frio inerte que preenche a sala pelo frio feroz de inverno que calibrava a noite em que olhávamos para ti como um mito. Let me, let me, let me, let me, freeze again… O frio de Purcell em The Cold Song, que cantaste num momento que poderia ser o epílogo deste texto – admitamos, aqui, um pouco de hantologia. Enfim, o soturno só doura, como o ouro, no escuro, e eles iluminam-te, desnecessariamente, como a lâmpada apontada às plantas falsas que decoram o teu palco. Charlotte, outra vez, permite-me contestar a infelicidade que partilhamos, juntando-me a ti no suspiro, pela liberdade. Não precisamos assim tanto de um público iluminado, ou de uma vestimenta emprestada, ou da grandiosidade do Teatro alla Scala. Precisamos apenas daquele arrojo com que me olhaste, Veronica.