Um auto-retrato, a pintura, a fotografia e um cavalo
the tailor, de São Trindade, consta de um conjunto de fotografias à volta da reconstituição da lenda de Lady Godiva, tendo por base a pintura homónima (1897) de John Collier (1850-1934) de inspiração pré-rafaelita. Mais que uma estética, o que a autora retira deste movimento é sobretudo o gosto pela simplicidade e capacidade narrativa das imagens.
Segundo a lenda, Godiva terá atravessado a cidade montada num cavalo, coberta apenas pelo seu longo cabelo, após diversas tentativas junto do marido para que este baixasse os altos impostos que mantinha sobre a população. Cansado dos seus pedidos, ele ter-lhe-á feito a proposta de que apenas acederia se ela se passeasse nua a cavalo, erradamente convencido que ela nunca iria aceitar. Chegado o dia, a população foi obrigada a ficar fechada dentro de casa e apenas um homem, um alfaiate de nome Tom, terá quebrado esta interdição de olhar e como consequência, segundo algumas versões, terá ficado cego devido à ousadia de não resistir a espreitar a sua beleza. É o nascimento do Peeping Tom e no centro da história aparece o tema do voyeurismo que se virá a tornar numa das questões centrais comum a diversos modos de entendimento do acto fotográfico e, no caso presente, traz para a fotografia um dos seus temas clássicos: a visão e o acto de ver.
the tailor cruza dois interesses particulares da autora, pintura e fotografia, e que enquanto disciplinas se começaram a cruzar ainda antes do aparecimento da fotografia. Os dispositivos ópticos eram desde há muito do conhecimento dos pintores que, não raras vezes, os utilizavam ao nível da construção espacial e a fotografia veio contaminar a produção pictórica com alguns dos valores que então começavam a construir a sua linguagem específica. A fotografia vem igualmente a tornar-se um auxiliar e um complemento dos tableaux vivants, muito em voga na época e a que o cinema deu continuidade mais tarde sendo exemplos maiores e mais próximos algumas encenações de Greenaway ou o magnífico Passion de Godard, este último interrogando a natureza e o processo do fazer da pintura a partir, por exemplo, da especificidade da representação da luz.
E se o tableau vivant muitas vezes criava cenas a partir da ideia da pintura e da encenação teatral, outras havia em que eram recriadas pinturas famosas. A fotografia acompanhou o processo e a recriação ou interpretação de pinturas representa um caudal de produção significativo, por exemplo em Jeff Wall (pensamos em duas interpretações de Manet), Sam Taylor-Wood (que se auto-retrata a partir de Velazquez) ou ainda Cindy Sherman ou Gregory Crewdson, cada um com a sua especificidade no modo de entender a relação entre a construção da imagem, a imobilidade e a representação.
Também o espaço do atelier foi centro de atenção e ocupou o seu lugar na representação desde a Renascença, como lugar de convívio e de encontro entre diversas personalidades centradas na figura do artista ou como espaço dedicado à criação sendo que, muitas vezes, é o próprio processo de criação que nos é mostrado como se esse processo trouxesse um novo entendimento à interpretação da obra. É ponto assente a importância e impacto que este interesse pelo processo teve em alguns movimentos artísticos ao longo do século passado e, na fotografia, uma das suas expressões seminais terá sido com Hans Namuth e o trabalho que desenvolveu junto de Pollock. Noutro extremo da representação do processo criativo encontramos, por exemplo, as fotografias do atelier de Francis Bacon que nos transportam para aquele caos demiúrgico a partir do qual trabalhava.
Em the tailor o atelier surge como um lugar quase desinvestido de significação, limpo e luminoso, onde o desenho tem um papel fundamental no processo de análise e construção da imagem. O espaço exíguo é ampliado pela luz e os aparentes erros de exposição são assumidos e incorporados, chamando-nos à realidade bidimensional da imagem à semelhança do que acontece com o desenho. A imagem do olho, ainda em esboço de volume, chama-nos a atenção para o tema da visão e da cegueira que atravessa a história narrada no quadro. O espelho cumpre uma das suas funções narrativas e de representação e funciona quase como uma mise en abyme, numa antevisão da imagem central de toda a exposição, a recriação da tela de Collier. O resto é fotografia: a diferença no grau de representação da realidade da figura feminina e do cavalo de papier-mâché e gesso, o pormenor da perna do cavalo que acaba no ar (no mesmo ponto em que a pintura a acaba), a incorporação do espaço envolvente não escondendo e revelando o dispositivo de encenação. E neste ponto, apesar de este ser um dispositivo comum na fotografia de retrato desde o início, não podemos deixar de recordar um outro retrato e um outro cavalo, de Meyer e Pierson, cerca de 1859 com o célebre Le Prince Impérial Sur Son Poney, Posant Pour Le Photographe. No final, São Trindade apresenta-nos um poderoso auto-retrato que para além do processo da sua própria realização, nos traz o cruzamento da fotografia com outros modos de produção de imagens, neste caso, a pintura e que está na base da sua formação.
Francisco Feio (texto adaptado do original de 2010 para a folha de sala da exposição)