Número 18

22 de Janeiro de 2022

O DESPLANTE

Traduções, Traições, Travessias

FREDERICO MARTINHO

Mahmoud Darwich explica no prefácio da sua antologia poética, “O Jardim Adormecido”, a dupla posição do trabalho de um tradutor, que por um lado liberta a poesia da restrição da língua ao mesmo tempo que comete a célebre traição da dissolução na língua do tradutor. Mas Darwich não se fica por aqui, já que é nessa dualidade que se encontra o encanto da poesia traduzida. O prazer pelo diálogo do que é comum a todos e a sede de descoberta da experiência poética é o que permite qualquer língua renovar-se em estilos. Darwich nasceu em 1942 na Palestina, foi expulso da sua terra quando a sua vila foi destruída pelo exército israelita, numa luta desigual que se perpetra nas imagens que nos chegam, ainda hoje, de câmaras colocadas num quinto ou sexto andar, sempre do lado seguro da Faixa, elevados ao lugar de Deus, de onde tudo pode ser visto confortavelmente (uma possível definição de Poder: o privilégio de observar em segurança). Imagens que de tão cruas são tão pobres – como se o realismo fosse uma transparência – e que de tamanha pobreza estética e sofreguidão pela verdade dos factos, tão pouco retiramos delas. Para lá de um sorvo seco, apenas a sede por outras imagens – essas que nascem por detrás das sombras de novas línguas – servirão para que os projécteis acertem também em nós, despertando-nos não só para o crime mas, sobretudo, para a beleza que é devastada por cada um desses crimes: Um astro passou no horizonte,/ descendo… descendo/ A minha camisa estava/ entre fogo e vento,/ e os meus olhos pensavam/ nos desenhos na areia./ E meu pai disse um dia:/ O que não tem pátria/ não tem sepultura/ …E proibiu-me de viajar. Mas viajou. Foi preso inúmeras vezes e viveu vários anos como refugiado, assistindo de fora ao desmantelamento da pátria onde nascera e da qual seria poeta maior. Mas esta pátria não é aquela que o poeta que nos ensinaram a decorar nos coloca na língua. A pátria, naquele lado do mundo, é uma palavra incontornavelmente armadilhada, com que Darwich, bem como os seus, tem que lidar não como húbris mas como uma herança de ameaça constante; não como uma ambição mas como uma modéstia forçada: A pátria, disse-me,/ é beber o café da mãe/ e voltar a casa, tranquilo, ao fim do dia. Ele, que sempre acreditou num futuro de paz e coexistência baseado no diálogo e no discurso (Aprendi toda a linguagem e destruí-a para construir uma única palavra: Pátria), o autor da Declaração de Independência da Palestina, o mesmo que anos mais tarde se arreda da Organização para a Libertação da Palestina, e que arrisco ver explicado no poema “Enquanto ele se afasta”: vivendo o tempo em que a vítima é um sangue que à noite nunca seca, acabará por admitir – se é que a poesia possa algum dia servir de confissão – que não gosta dos que defende nem é inimigo dos que combate. Ele, que nunca aspirou a ultrapassar as fronteiras do seu espaço familiar, escrevendo apenas para ele mesmo, aceitou o facto de a sua história individual (de guerras e de amores) ser o recorte de um ser colectivo ou de uma grande história de um desenraizamento que se confunde com o de um povo (de guerras e de amores): Queria apenas/ que ela [Sulamita] compreendesse que os refugiados/ são uma nação que sofre de frio/ e pela privação duma terra roubada. O ‘Poeta da Palestina’, termo que aceitou ao fixar-se na História como testemunha do que o fez sofrer, terá que ser lido antes que nos ceguem de vez com a degenerativa crueldade dos factos, ou melhor, teremos de condenar, não só cada bombardeamento, como cada segundo que nos apresentem essa violência sob o véu de neutralidade com que querem cobrir uma injustiça e sobre o qual não nos querem autorizar a tomar uma posição. Não se trata aqui de tentar resolver um conflito geo-político, mas sim de desembainhar a perspectiva de que a distância a que nos encontramos de uma solução poderá ser a mesma daquela a que nos encontramos de confiar mais nas ficções, nas sombras das palavras, no novelo da disputa entre o Pessoal (o Poema) e a Política (a Poesia). O que Darwich nos apresenta é a tensão entre o movimento do poema e o pensamento que o poema põe em movimento, culminando nesta obscuridade: Não há História para os dias futuros/ nem mortos, nem vivos. Nem trégua/ na guerra contra nós, nem paz. Sem essa mentira essencial travada nos enredos das línguas que dilatam o espaço do sensível, prolifera o vácuo tenebroso. E não sendo o obscuro o objectivo da poesia, ele abre o espaço necessário às formas de combate entre a linguagem poética e a realidade que a poesia não se contenta em descrever. Ou seja, e voltando outra vez ao seu prefácio, o que há a retirar da experiência da sua leitura – a mesma que ele retirou da sua vida – é que pior do que denegrir a ‘poesia política’ (o que de poético se perde no político) é o excesso de desprezo pelo político. Por isso, que as traições se acometam na reconversão das palavras. Que novos estilos irrompam dessas incursões por outras línguas, para que nos acerquemos de traumas mais belos e mais consequentes – os que realmente ferem: Peço-vos que sejais lentos, que me mateis devagar, para que possa escrever um último poema à eleita do meu coração