Caminhou até à estante e tirou um livro, ao acaso. Veio-lhe à mão um, de lombada verde garrafa, que estava há muito tempo arrumado, à espera de ser lido. Sempre achou que os livros nos encontram quando precisamos deles. Talvez sejam os livros a descobrir-nos, a decidir quando chegou a hora de se oferecerem ao leitor. Deixou que o acaso continuasse a escrever o guião e abriu-o aleatoriamente. Fixou-se numa frase. Tragam-me a árvore seja ela qual for.
Claro que havia outras frases que ignorou, por exemplo, “e adivinharei o signo sobre as entranhas dos vossos gatos”, mas reteve só aquela, talvez por estar na estação das plantações e ter de escolher entre um sobreiro e uma bétula.
Era mesmo uma árvore que me faltava, leu umas linhas acima — e foi assim lendo o livro ao contrário, saltando versos para lhe parecerem aleatórios. E, chegado ao início do livro, saltou para outro, ao qual fez o mesmo, e a outro e a todos, até chegar ao início da biblioteca. Nesse momento, sem nada mais para tresler, sentiu-se novamente um bebé, pronto para outra e liberto da certeza de que, mais do que vivia, envelhecia.
A dobra marcava um poema, o lápis o verso. Isto foi há muitos anos. O papel, áspero, ganhou uma patine dourada e, talvez por isso, hoje tocam-no mais os versos esperançosos do que os caligráficos de então e, por isso, ele remarca a lápis “talvez alguma/ ave errante/ traga”, com uma não maior descrença que outrora.
Na penumbra de um jardim esquecido, onde o tempo escorre lentamente como melancolia líquida, uma Ficus carica gigante erguia-se majestosa. As suas raízes serpenteadas pelo solo como veias pulsam de um sonho antigo. Das suas folhas, caíam gotas leitosas, translúcidas, que pareciam sussurrar segredos inaudíveis ao tocar no chão.
Foi estranho constatar que as ameaçadoras giestas, que vejo quase todos os verões desdobradas em labirintos por entre os terrenos circundantes, dão flores. As espécies mais robustas e altas, amarelas, as mais baixas e difíceis de eliminar, brancas. A estas minhas raízes associava-lhes tocas de bichos, pós venenosos, secura na garganta, sangue no nariz. Não sabia que floriam.
Desarvoradas as gaivotas guerreiam-se por um minúsculo corpo morto. As pombas escondem-se sob os beirais numa imobilidade escultórica. A ERA vende casa, o autocarro turístico segue vazio, a nogueira promete cem cestos.
As horas passam bíblicas, o coração bate profano.
Independentemente da página onde abria o livro, a frase era sempre a mesma. Olhou pela janela em frente à secretária e lá estava ela. A árvore. A única que tinha resistido na extensão gelada que rodeava a casa. Aquela, pensou, não iria a lado nenhum. Foi buscar a câmara e fotografou-a. Perfeita, pensou ele a olhar a fotografia. Aqui está a árvore. Não é ela, mas ao mesmo tempo não deixa de ser ela. Terão de se contentar com isto.
[Tragam-me a árvore foi escrito, em simultâneo, por API, CJ, DB, FF, HB, LLP, MM e RAS, a partir do texto do primeiro parágrafo.]